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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Uma situação estranha para os leigos, incompreensível para todos, como algo que escapa definitivamente à lógica dos dias e das maleitas habituais.
Um dia veio buscar-me ao escritório. Não sei ao certo de quem partira a ideia de incluir o meu nome. Se dele, se do Óscar, se da Filipa, embora o simpático convite viesse desta última. E lá fui fazer a apresentação do filme num ciclo de cinema cujo leitmotiv era a Justiça. Conhecêramo-nos havia algum tempo, mas creio que foi pela sétima arte que nasceu um maior entendimento mútuo.
Para além do direito e do cinema, em comum havia o gosto pelo futebol e a paixão pelo mesmo clube.
Discordávamos sempre em matéria de forma de governo. Ele era um monárquico profundo, zeloso da tradição, do peso da história e das instituições como cimento da unidade nacional em democracia, defendendo as suas posições com a educação, a elevação e o conforto próprios de quem se sente bem na sua pele e acredita que para lá das divergências só respeitando o outro se consegue passar a mensagem.
Admirava-o por essa sua franqueza, por vezes ingenuidade, simplicidade e cativante simpatia com que sempre terçávamos armas. E mesmo quando se posicionava do outro lado da barricada, o que algumas vezes aconteceu, nunca deixou de registar publicamente o seu apreço pelas posições que sempre defendi.
Parte cedo, muito cedo. E é sempre demasiado cedo quando se está na força da vida e se tem tanto para dar.
Que o seu Deus, em cuja generosidade sempre acreditou, e que tão injusto se mostrou para com ele e tantos outros, todos os dias, seja capaz de o acolher com a nobreza que merece, e olhe por aqueles que colhidos pela dor da sua súbita partida nos recordarão que continuará presente.
Como sempre permanecem todos aqueles que mesmo longe contribuem pela sua memória para tornarem menos penosos os nossos dias terrenos.
Que descanse em paz.
Vejo que o atento director dos Serviços de Saúde de Macau, Alvis Lo, fez ontem um apelo à população para que se vacine contra a Covid-19. O modo como deixou registado o seu pedido foi veemente. E pela primeira vez veio acompanhado de um aviso sério à navegação: “A vacinação é uma urgência e uma necessidade”.
Acrescentou de imediato que "se não houver imunidade colectiva, não serão retomadas as entradas e saídas normais com outros territórios".
Noutra sede, uma das operadoras de jogo organizou em colaboração com os SSM uma campanha de vacinação dos seus trabalhadores, que fez acompanhar de um programa de incentivos no valor de 16 milhões de patacas.
Não deixa de ser triste que o cumprimento de uma necessidade por parte dos residentes precise ser de alguma forma incentivada e premiada para que as pessoas se predisponham a fazer o que devem.
Mas se assim é, então talvez seja altura de o Governo da RAEM, já que não quis fazer depender a entrega das comparticipações pecuniárias ao consumo de qualquer exigência aos residentes, impor restrições à circulação de pessoas entre Macau e o interior da China para quem não estiver vacinado.
Pode ser que por essa via os nossos números se comecem a aproximar dos apresentados pelos nossos vizinhos de Zhuhai, e não nos deixem ficar mal.
Quem tenha ouvido e lido as notícias relativamente ao que aconteceu com um avião da Ryanair, num voo entre Atenas e Vilnius, no exacto momento em que se preparava para sair do espaço aéreo da Bielorrússia, não pode deixar de ficar apreensivo com o que aconteceu.
O rumor da eventual existência de uma bomba a bordo para mandar um caça Mig-29, de fabrico russo, obrigar o avião civil a fazer meia-volta e escoltá-lo até que aterrasse em Minsk foi apenas o pretexto para encobrir um verdadeiro acto de pirataria e terrorismo de Estado, típico de governos autoritários dirigidos por autocratas corruptos.
Não se ignorará que o avião estava mais perto do destino final do que da capital da Bielorússia e que aterraria mais depressa em Vilnius do que no aeroporto onde foi obrigado a interromper o voo durante longas horas. Pelo que se em causa estava a segurança do avião e passageiros teria sido mais rápido e seguro deixá-lo seguir até ao seu destino final, avisando as autoridades da Lituânia da eventual existência de um engenho explosivo, em vez de interromper-lhe abruptamente a rota.
Terrorismo de Estado sim, mas também um acto de vingança bem revelador da baixeza de Lukashenko, que não hesitou em usar os meios do Estado e a Força Aérea para se proteger e ao seu regime de um jornalista e blogger de apenas 26 anos cuja única arma que possui é o que escreve.
Para além do risco da operação e do medo e incómodo que causou aos passageiros, já que o desvio de um avião comercial num voo regular, contra a sua vontade, por razões políticas, será sempre um acto de pirataria ainda que conduzido por um Estado ou uma organização política, a acção das autoridades da Bielorrússia constituiu uma violação grosseira do direito internacional aéreo e das convenções em matéria de aviação civil, pelo que suscitou uma reacção enérgica da maioria da comunidade internacional.
Reacção que não poderá ficar apenas pelas sanções económicas. A comunidade internacional não pode tolerar a existência de regimes corruptos que infernizam a vida do seu próprio povo e colocam em causa a segurança colectiva.
À margem desta reacção, uma vez mais, ficaram os aliados de Lukashenko. A Rússia de Putin, pela voz do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, e de outros altos dirigentes saiu de imediato em sua defesa, considerando que um acto de pirataria contra um avião comercial para detenção de um opositor político é uma acção razoável e legítima.
Enquanto isso, em Pequim, o editorial do Global Times dedica-se a levantar dúvidas e a desvalorizar o incidente, chegando a colocar a hipótese de que tivesse sido a própria tripulação do avião a pedir socorro, defendendo que a prisão de Roman Protasevich e da namorada foi praticamente um caso fortuito, e referindo que são precisos mais factos, devendo dar-se o direito de defesa às autoridades da Bielorrússia. Como se não entrasse pelos olhos de todos o que aconteceu e não se soubesse que a Bielorrússia é um "parceiro estratégico abrangente".
O editorial em causa é tão surreal que vai mesmo ao ponto de questionar por que motivo as autoridades da Bielorrússia iriam deter um jornalista que nem sequer é o mais "proeminente líder da oposição", se até existe uma "oposição" e há "eleições multipartidárias", certamente esquecendo o que ainda recentemente aconteceu aqui ao lado com a aprovação de legislação destinada a reduzir a democraticidade do sistema eleitoral para não se perderem eleições, se decapitarem os partidos da oposição democrática e se prenderem e condenarem dezenas de jovens estudantes, políticos e advogados.
O que aconteceu com o avião da Ryanair é a prova de que a violência, a repressão, a mentira oficial, a desinformação e o uso da força continuam a ser os argumentos dos autocratas, dos fracos, dos corruptos, e de todos os que temem a verdade e há muito perderam a razão.
(créditos: @Paulo Novais/Lusa)
A época futebolística do Benfica terminou como começou. Isto é, em humilhação e vergonha.
Humilhação porque uma equipa que vale centenas de milhões de euros, com um investimento de início de época de mais de cem milhões, recheada de jogadores com experiência internacional, pagos a peso de ouro e que são titulares nalgumas das melhores selecções do mundo, não podem jogar tão pouco como o que demonstraram ao longo da época. Ainda porque aquilo que foi prometido aos sócios e adeptos foi que a equipa iria jogar muito mais do que com Bruno Lage, que iria conquistar títulos, ter uma presença europeia à altura dos seus pergaminhos e ser dominadora a nível interno.
Não foi nada disso o que se viu.
Durante toda a época os jogadores do Benfica apresentaram um futebol miserável, que apenas melhorou a espaços durante alguns jogos e em períodos curtos, tendo a equipa sido incapaz de segurar resultados e tirar partido dos momentos em que ganhou algum ascendente, como aconteceu no jogo para o campeonato com o Sporting, já depois deste se ter sagrado campeão nacional, e em que depois de estarem a ganhar por 3-0 e 4-1 andaram completamente aos papéis.
As escolhas de jogadores e as tácticas para os jogos foram um desastre. A defesa nunca chegou a acertar. Retirou-se a titularidade da baliza a um grego excepcional entre os postes e com potencial. Mudou-se a forma de jogar habitual da equipa para um figurino com três centrais do qual não se retirou nenhum proveito. O treinador teimosamente insistiu. As alterações durante os jogos raramente e só por mero acaso surtiram algum efeito. A maior parte dos reforços não passou de uma promessa permanentemente adiada ou de um erro de casting. Jogadores lentos, apáticos, jogando sem qualquer inteligência, prontos para a quezília e a discussão sem razão. Uma linha média que parece estar sempre cansada, ausente, trapalhona, fazendo faltas sem necessidade e a destempo, atrás de uma frente de ataque desacertada, que se esforça e corre muito sem proveito, e que falha ainda mais, normalmente de forma escandalosa diante das balizas adversárias.
Eliminados numa pré-eliminatória da Liga dos Campeões, que arruinou a época financeira, e onde se entrou com a maior displicência para sermos eliminados por uma equipa da segunda divisão europeia sem qualquer currículo. Derrotados de forma categórica na final da Supertaça, corridos da Taça da Liga, afastados da luta pelo Campeonato Nacional com sucessivas desculpas e erros múltiplos, que um treinador espaventoso quis desculpar com a COVID-19, como se esta não tivesse afectado todas as equipas em Portugal e na Europa. Acabou discutindo o terceiro lugar com o quarto classificado na mais importante prova interna, depois de afastado da Liga Europa sem qualquer glória e terminar uma época que se revelou penosa perdendo, uma vez mais, uma final da Taça de Portugal, com jogadores expulsos, sem qualquer fibra nem controlo nervoso, e que deram um espectáculo deprimente durante a maior parte do tempo.
A Supertaça Cândido de Oliveira da próxima época também já ficou perdida porque também não iremos lá depois da derrota de ontem em Coimbra. E Luís Filipe Vieira e Jorge Jesus continuarão a assobiar para o ar, fazendo de calímeros e prometendo mundos e fundos aos papalvos que ainda acreditam no Pai Natal, enquanto alguns empresários amigos vão embolsando milhões em comissões e o nome do clube arrasta-se pela lama que é posta a descoberto pelas investigações judiciais e parlamentares.
Os únicos benfiquistas campeões no futebol profissional masculino foram-no noutra equipas. Fosse em Portugal, em Espanha, em Inglaterra ou em França. A esses, e aos nossos adversários que em Portugal, com inteiro mérito, conquistaram troféus, só há que reconhecer que foram melhores e dar-lhes os parabéns, fazendo votos de que no que a nós diz respeito não se volte a repetir.
Gostava de poder pensar que para a próxima época será diferente, mas tenho dúvidas que tal seja possível. E tenho pena porque gostava de voltar a ter esperança.
Por agora tenho somente vergonha. Não tanto pelas derrotas, mais pela forma como se perdeu, e pelas deprimentes conferências de imprensa do nosso treinador. Embora tenha consciência de que enquanto para os lados do meu clube continuar a imperar, dentro e fora das quatro linhas do futebol profissional, uma cultura desportiva assente num novo-riquismo esbanjador, chico-espertista, parolo, convencido e mal-educado será difícil esperar mais e melhor.
Por muitas lágrimas e muito suor que escorram pelos rostos dos mais novos e dos mais inconformados.
Ontem ficámos a saber que o Governo decidiu cancelar o concurso público para a empreitada da obra de construção da Linha de Seac Pai Van do Metro Ligeiro, que havia sido lançado em Julho de 2020.
Na altura da abertura das propostas os preços oscilavam entre 896 milhoes e mais de 975 milhões de patacas, sendo os prazos de construção entre 490 e 820 dias de trabalho. Estava previsto que a empreitada se iniciasse em finais de 2020.
Desconheço se a proposta de cancelamento, ou a sua decisão, partiram do próprio Chefe do Executivo, mas não custa acreditar que tenha sido este o responsável pela decisão depois de tudo o que aconteceu na primeira fase em matéria de custos, tempo de execução e desresponsabilização, até hoje, dos principais responsáveis.
Desta vez, o Governo não esteve com meias-palavras e esclareceu que "[d]ada a experiência adquirida do passado, há probabilidade de ocorrência [de] situações graves de trabalhos a mais e extensão de prazo de execução", atenta a "irracionalidade considerável dos prazos de execução propostos", o Governo da RAEM, por "razões de interesse público", que não se esperaria que fossem outras, "decidiu pela anulação do referido concurso e, muito em breve procederá ao lançamento de um novo concurso para a execução a respectiva obra".
As razões invocadas pelo Governo indiciam claramente que se estaria, uma vez mais, perante uma "fraude", idêntica a tantas outras ocorridas no passado, e pela qual pagariam a RAEM e os contribuintes os prejuízos de todos e os lucros da habitual meia dúzia de indivíduos.
Estiveram, pois, muito bem, o Chefe do Executivo e o Governo, a quem aplaudo a decisão e dou os parabéns pelo acerto de procederem à anulação do concurso. São decisões como esta que contribuem para a afirmação do sentido de seriedade da função política e a afirmação patriótica dos decisores.
Pode ser que este seja o sinal que a população de Macau precisava para perceber que alguma coisa começa a mudar e que não basta enxotar as moscas herdadas de anteriores governações. É preciso acabar com elas para não nos continuarem a incomodar e a darem cabo da reputação e credibilidade de Macau e da qualidade de vida dos residentes.
E quanto aos concorrentes que no concurso anulado apresentaram propostas com preços e prazos irrealistas, já a contarem com o cambalacho dos trabalhos a mais e com a extensão dos prazos, como aconteceu no passado, o mínimo que se pode esperar é que nem sequer se apresentem ao próximo concurso. E que tenham vergonha.
Porque se voltarem a apresentar-se no próximo concurso para fazerem propostas idênticas mas com preços mais altos e prazos mais alargados, isso só quererá dizer que as propostas apresentadas no primeiro concurso não eram sérias.
E quem para a realização de obras públicas apresenta propostas pouco sérias uma vez, ou melhor, se habituou a apresentar propostas pouco sérias para vencer concursos (o caso da capacidade da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Macau é flagrante), contando com a conivência de alguns decisores, com a opacidade dos processos decisórios e eventualmente ignorando conflitos de interesses, dificilmente apresentará, alguma vez, uma proposta decente para realização de uma obra pública na qual o Governo da RAEM e a sua população possam à partida confiar.
Ontem ouvi, esta manhã li, que “[o] período de observação médica mantém-se inalterado. Para quem vier de Hong Kong são 14 dias. Quem vier de Taiwan são 21 dias e para alguns países em particular, como Índia, Nepal, Filipinas, Brasil ou Paquistão será prolongado para 28 dias, sendo que para além destes cinco países o período de observação mantém-se nos 21 dias. Se verificarmos um caso positivo de anticorpos, ou seja, sujeitos que tenham sido anteriormente infectados, como foi o caso do cidadão nepalês, iremos solicitar às pessoas que prolonguem o período de observação médica em 7 dias. No caso de quarentenas de 21 dias serão prolongadas até 28 dias e nos casos de quarentenas de 28 dias prolonga[das] até 35 dias”.
De acordo com a informação disponível, o período de incubação varia entre 1 e 14 dias, sendo a média entre 5 e 6 dias.
Informações acessíveis na Internet esclarecem que:
a) Para a OMS (The World Health Organization) o período de incubação do COVID-19 varia entre 2 e 10 dias (fonte: Novel Coronavirus (2019-nCoV) Situation Report-7 - World Health Organization (WHO), January 27, 2020);
b) Para a China’s National Health Commission (NHC) o período de incubação vaira entre 10 e 14 dias (fonte: China's National Health Commission news conference on coronavirus - Al Jazeera, January 26, 2020);
c) Para as autoridades de saúde dos Estados Unidos da América o período de incubação é estimado entre 2 e 14 dias (fonte: Symptoms of Novel Coronavirus (2019-nCoV) - CDC);
d) Para a DXY.cn, um grupo de médicos chineses e profissionais de saúde da primeira linha, fala-se em períodos de incubação de 3 a 7 dias, até 14 dias.
Em Macau, talvez porque houve um caso no exterior em que o período de incubação foi de 21 dias, resolveram alargar desmesuradamente, sem qualquer apoio científico sólido, e transformando uma excepção em regra, o período de quarentenas.
Se uma decisão dessas fosse tomada por um chefe de posto, no tempo colonial, em Morrumbala, ainda poderia compreendê-la? Mas em Macau, em 2021?
Pois, é assim que estamos.
Há dias, o director dos Serviços de Saúde de Macau, Alvis Lo, que é também médico e presidente do Conselho dos Assuntos Médicos, e cujo esforço tem sido notável em relação ao combate à COVID-19, manifestava a sua preocupação, com toda a razão, relativamente à baixa taxa de vacinação da população.
Desde o dia 9 de Fevereiro pp., quando começaram a ser ministradas as vacinas, até agora, estando nós já em Maio, apenas cerca de 10% da população está vacinada. Alvis Lo referiu que a actual taxa de vacinação não é satisfatória apesar do muito trabalho já desenvolvido. Em contrapartida, aqui ao lado, em Zhuhai, a taxa de vacinação é já a mais alta da China e 80 % da população está vacinada.
Estes números, e esta diferença abissal entre Macau e Zhuhai, devia ser motivo de vergonha para todos nós, a começar pelo Chefe do Executivo de Macau, que podendo dar um exemplo de boa governança para toda a China deixa a RAEM sair humilhada deste confronto.
Já aqui chamei a atenção para este estranho, e a meu ver pouco inteligente, fenómeno. Com milhões em todo o mundo desesperadamente à procura e à espera de vacinas, aqui desperdiçam-se tempo e recursos, seja por medo ou simples ignorância, sem que se tire partido da ajuda dada no sentido de todos se poderem vacinar sem custos e em prazo curto para ficarmos todos mais protegidos.
Em contrapartida, bastou as autoridades anunciarem a segunda fase do programa de estímulos à economia e ao consumo, com o maná da distribuição de patacas e vales de desconto, para a população se predispor a massivamente inscrever-se logo no primeiro dia. Referia ontem o Telejornal da TDM que foram cinquenta mil os residentes, a esmagadora maioria sem estarem vacinados e que não precisaram de realizar qualquer teste de ácido nucleico, que em cinco horas se inscreveram para terem acesso aos benefícios.
Não deixa de ser estranho que esta distribuição de dinheiro ao povo não seja rodeada dos mesmos cuidados, critérios e grau de exigência que presidiram, por exemplo, ao impedimento de manifestações no Primeiro de Maio e durante todo o ano passado.
Ou que ainda impedem o empenho na abertura, com transparência, de um canal de viagem directo, por via marítima, entre Macau e Hong Kong, para quem esteja vacinado e apresente um teste negativo realizado nas 72 horas anteriores. Ou, nas mesmas circunstâncias, a redução dos períodos de quarentena para que muitas viagens de negócios, médicas, de intercâmbio académico ou simples visita a familiares se possam realizar com segurança. Até porque o critério referido dos 14 dias sem casos, que foi o indicado em relação a Hong Kong para se admitir o levantamento de restrições, não é igual ao seguido para as deslocações entre o interior da China e Macau.
Compreendo que seja mais do agrado da populaça, e mais fácil, dar dinheiro que não custou a ganhar para estimular o consumo do que oferecer estímulos à população para que se vacine ou para que exerça os seus próprios direitos consagrados na Lei Básica.
Mas enquanto for este o espírito que preside à governação, estimulando-se o consumo sem critérios adequados e tendo como único guião agradar a quem recebe, nos mesmos termos em que se restringem direitos para mostrar serviço a quem manda, em vez da criação de um espírito forte de entreajuda, solidariedade social, consumo responsável e exercício saudável da cidadania, será difícil conseguirmos algum dia construir uma sociedade equilibrada.
Por muitos talentos e dinheiro que se tenha disponível, enquanto faltar isso faltará sempre o básico.
(Photograph: Biontech Se Handout/EPA)
Interrompo a ausência dos últimos dias chamando a vossa atenção para três curtas notas, que são ao mesmo tempo evidências do contraste entre a actuação do novo inquilino da Casa Branca face ao seu antecessor, à retórica confrontacional de Pequim e aos abusos que estão a ser cometidos em nome do rule of law na RAE de Hong Kong.
A primeira diz respeito à decisão ontem revelada pela Embaixadora dos Estados Unidos junto da Organização Mundial do Comércio (WTO no acrónimo inglês), Katherine Tai, de que o Presidente Biden deu instruções no sentido da suspensão das protecções da propriedade intelectual, de maneira a que possam ser disponibilizadas para todo o mundo, ricos e pobres, as patentes das vacinas da COVID-19, no que constitui um passo extraordinário no combate à pandemia.
Mas mais do que isso, os EUA não estarão apenas a partilhar patentes e tecnologia. Este é o culminar dos primeiros cem dias de governo do novo presidente, a pérola que brilhou quando se abriu a ostra.
Não sei qual será o efeito prático deste movimento. Estou, todavia, convicto de que este é um sinal muito forte no sentido do desanuviamento da tensão internacional, uma ajuda consistente aos países menos desenvolvidos e a transposição de um discurso inflamado e balofo para acções que podem fazer a diferença, ajudando os EUA a limparem a má imagem internacional deixada por Trump e a sua pandilha de cantinfleiros.
Em sentido oposto, o discurso cada vez mais belicista do mais alto responsável chinês. Pode ser que seja apenas um discurso para dentro e destinado a impressionar os seus fiéis, Taiwan e Hong Kong, em ano de grandes comemorações internas, embora seja difícil acreditar nisso.
A retórica da invencibilidade não é própria de quem defende a paz e uma coexistência pacífica e cooperante com todas as nações e povos do mundo, em especial se for acompanhada daquelas conferências de imprensa surreais dos porta-vozes do MNE chinês, plenas de ameaças e acompanhadas de exibições de força no Mar do Sul da China e no estreito da Formosa.
A forma como Pequim reagiu anteriormente a um simples pedido feito por Canberra de realização de uma investigação independente ao surgimento da COVID-19, que viria depois a permitir no âmbito da OMS/WHO, e o modo como agora suspendeu toda a cooperação com a Austrália a propósito do China-Australia Strategic Economic Dialogue, revela a utilização de dois pesos e duas medidas.
Iguais reacções não surgem quando em causa estão decisões da União Europeia ou dos EUA que colocam em crise interesses chineses, o que mostra como é fácil ser contido com os mais fortes e desabrido com os mais pequenos. Ou como se as razões de segurança nacional, quando seriamente invocadas, e não com uma cortina para outro tipo de actuações à margem do justo e do legal, constituíssem um exclusivo de um qualquer país.
Quando começar a fase da contenção de danos talvez seja tarde para se alterarem os sentimentos que, desgraçadamente, amiúde começam a surgir em diversos países relativamente a tudo que traga a marca identitária chinesa. É mau para a imagem do país, é mau para o seu povo, é mau para o desenvolvimento e o equilíbrio global.
Uma última nota para a decisão proferida pelo District Court de Hong Kong de aplicar penas de prisão a alguns activistas. Isso seria expectável tendo presente a natureza do regime, tudo o que aconteceu nos últimos dois anos e a forma desastrada como as autoridades locais e o Governo central lidaram com o problema.
Cada um fará a sua leitura, alguns apenas aquela que será compatível com os seus interesses pessoais.
Em todo o caso, não deixa de ser preocupante que um tribunal se permita, independentemente de se poder discutir se foi um motim ou não, condenar afirmando expressamente que não existe qualquer prova de que os arguidos tenham desempenhado qualquer papel efectivo no tumulto (riot).
Se a isto se somar a dispensa de uma jornalista por colocar perguntas difíceis em conferências de imprensa, começa-se a ter o filme completo da extensão da substituição do rule of law pelo rule by law.