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equívocos

por Sérgio de Almeida Correia, em 27.02.21
Xi-Jinping-partida-2.jpg(créditos daqui)

Com a aproximação da data para as chamadas “Duas Sessões”, nome que é dado às reuniões que ocorrerão em Março próximo, em Pequim, da Assembleia Popular Nacional e da Comissão Política Consultiva do Povo Chinês, começámos a assistir a um conjunto de movimentações e tomadas de posição, por parte de alguns actores secundários deste complicado puzzle em que vivemos, visando a marcação da agenda e fazerem prova de vida junto da elite dirigente da RPC e do PCC.

Nos últimos dias ouvimos as declarações de Lok Wai Kin, o vice-presidente da AEPDHKM (Associação para o Estudo da Política de Desenvolvimento de Hong Kong e Macau), produzidas num seminário sobre o princípio “um país, dois sistemas” e a uma estação de rádio; assim como de Xia Baolong, director do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau no Conselho de Estado, e também de Han Dayuan, um professor de Direito da Renmin University. Todas estas declarações afiguram-se particularmente importantes, atento o eco que lhes foi dado pelo China Daily.

E o que dizem eles? Em resumo, que só patriotas podem governar Hong Kong e Macau, querendo com isso dizer que a aplicação prática do princípio “um país, dois sistemas” exige que o poder político das duas Regiões seja exercido em exclusivo por patriotas.

Eu confesso que estou de acordo com a ideia-chave e penso que o princípio de que o poder político deve ser exercido por patriotas deve ser de aplicação universal. Isto é, considero que todos os países, democráticos, aparentados e não-democráticos devem ser governados por patriotas. E com patriotismo.

O problema está em saber, já que a lei não o define, quem são os patriotas e quem é que irá defini-los. E, também, tendo-os definido, esclarecer se existirá uma lista com os seus nomes de onde se fará a escolha dos patriotas à medida que os lugares forem vagando ou precisarem de ser preenchidos. Seja por criação de um novo órgão, seja por velhice, falecimento, violação da disciplina do partido, pura incompetência, incompreensão do princípio “um país, dois sistemas”, falta de subserviência ao líder, ou qualquer outra razão válida de acordo com aqueles que têm sido os cânones vigentes.

As dúvidas acentuam-se quando olhamos para os actuais sistemas políticos de Hong Kong e Macau, tal como foram desenhados e consagrados nas respectivas Leis Básicas, por parte da Assembleia Popular Nacional, no respeito integral pela Constituição chinesa e os acordos firmados com o Reino Unido e Portugal.

É que até agora, tanto quanto sei, não houve um Chefe do Executivo nas duas regiões que não fosse escolhido com o apoio do Governo Central; cuja posse não lhe tivesse sido dada pelo mais alto magistrado do Estado chinês; e que não tivesse jurado defender a lei fundamental e os dispositivos de consagração das autonomias de cada uma dessas regiões. O mesmo se diga quanto aos membros dos respectivos governos.

E, no entanto, o que se viu ao longo destas duas décadas?

Bom, o que se assistiu foi a um reforço da componente de intervenção local nos dois lados do delta do Rio das Pérolas, num período inicial, ao qual sucedeu o aparecimento de forças políticas que manifestaram a sua preocupação com o rumo que as governações iam tomando, fruto da inépcia e dos sucessivos escândalos, com a má gestão e a corrupção à cabeça, que levou à prisão de altos dirigentes – e que não terá levado a mais porque a imagem seria ainda bem pior –, e a um decréscimo da qualidade de vida das populações, do seu bem-estar, dos sistemas de saúde e de transportes herdados, da qualidade do ar e, entre outras coisas, ainda, em razão do desrespeito por promessas anteriormente feitas.

Todos temos uma noção do que seja o patriotismo em termos genéricos. Isto é, o amor à pátria, a qualidade de quem é patriota. Coisa diferente são os que se alardeiam como sendo patriotas, que na prática são, efectivamente, uns patrioteiros.

Penso que este último ponto tem sido objecto de grande confusão. Seria bom, por isso mesmo, que se aproveitassem as reuniões que terão lugar em Pequim, para se esclarecer o que se entende por ser patriota. Fazer essa definição em termos práticos e consistentes com a Constituição chinesa e as Leis Básicas de Hong Kong e Macau é uma exigência natural.

Porém, o que eu aqui gostava de perguntar é porquê, e de onde nasceu essa vontade de vincar de forma tão acentuada, neste momento, essa necessidade de afirmação patriótica.

Se a aplicação do princípio “um país, dois sistemas” tem sido um êxito, se estas duas dezenas de décadas foram um sucesso, de tal forma que o Presidente Xi reafirmou por diversas vezes a excelência do princípio e da governação, enaltecendo os sucessos das Regiões Administrativas Especiais, sem prejuízo de aqui e ali ir sugerindo ajustes e apontando aquela que em seu entender seria a linha justa, qual o motivo que leva esta gente a manifestar, tão tardiamente, em voz alta, a necessidade de se ter patriotas a exercerem em exclusivo o poder político das duas regiões?

Quererão com isso dizer que até agora as Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e Macau não foram governadas em exclusivo por patriotas? Então Tung Chee-Hwa, Ho Hau Wah, Chui Sai On, C. Y. Leung e Carrie Lam, por exemplo, não foram escolhidos por serem patriotas? E os seus governos não eram formados por patriotas? E não foram todos objecto dos maiores encómios e condecorações oficiais?

Ou será que se está a querer dizer que essa gente foi pouco patriota? Que lhes faltou patriotismo na governação e na concretização do princípio “um país, dois sistemas”?

E os que estão no Conselho Executivo não são todos patriotas? Não o foram sempre? Que razão haverá para que até conhecidos cadastrados, e alguns tipos ligados a negócios menos regulados da área do jogo, se afirmem como “patriotas”; e haja outros que por tal motivo se sentem na mesma necessidade de afirmação enquanto aspiram a obtenção, no futuro, de uma concessão de jogos de fortuna e azar?

Deixando de lado Hong Kong, que não me diz directamente respeito, e focando-me apenas em Macau, o que se pergunta é se tem havido falta de patriotismo por parte das gentes locais, dos seus representantes na Assembleia Legislativa, no exercício de cargos públicos ou na execução de projectos que constituíam, e alguns continuam a ser, apostas do Governo e dos Chefes do Executivo.

Quer-me parecer que em tudo o que tem sido realizado em Macau não tem faltado empenho. Das obras do metro ligeiro às centrais de incineração e ao tratamento de águas residuais, do novo hospital à nova prisão, à gestão das concessões de terras, aos projectos de habitação social e económica, à especulação imobiliária, aos múltiplos e sucessivos ajustes directos, até a empresas sem história e sem obra que vencem consultas, sem esquecer esse escândalo que são as agências de emprego, o que não faltou foi “patriotismo” na decisão.

E o patriotismo tem sido de tal ordem que alguns deputados, querendo sublinhá-lo, até aprovaram uma lei na Assembleia Legislativa para dificultar a vida às empresas e às pessoas que precisam de contratar mão de obra no exterior, uma mais qualificada do que outra, para preencher lugares para os quais não existe gente capaz em Macau e que muitos cidadãos locais que se dizem patriotas não querem ocupar. A coisa foi de tal ordem que quando o Chefe do Executivo foi à Assembleia Legislativa, no Outono, por altura da discussão das LAG, teve que lhes lembrar que tinham sido os queixosos a aprovar a lei anterior, meses antes (23/6/2020), a mesma para a qual já estavam a pedir medidas de excepção.

É certo que alguns se empenharam tanto em fazerem boas escolhas que estão presos. Mas, que se saiba, não foram presos por falta de patriotismo. Ou por não constarem das listas de patriotas. Ou por serem pró-democratas. Foi por outras razões, bem mais comezinhas e que resultam da lei penal vigente, embora muita gente estranhe por que razão tenham demorado tantos anos a acusá-los, e depois haja outros, envolvidos nos “esquemas”, que tenham continuado, e continuem, à solta e a beneficiar do “sistema”.

E também não creio que seja por falta de patriotas em lugares-chave da Administração Pública e da Justiça que os processos não sejam despachados, que haja serviços cada vez mais inócuos, ou que o sistema de justiça funcione mal. É que, olhando para este último, a avaliar pelos anos que alguns levam, e em especial pela obra realizada, seja nos tribunais ou na advocacia, na mediação, na arbitragem ou na organização de seminários, o que não tem faltado são patriotas e acções patrióticas.

Ou seja, o problema, caso as coisas não estejam a funcionar, como parece não estarem há muito tempo, não será por falta de patriotismo, mas talvez devido a uma forma enviesada de encarar e manifestar o patriotismo que para si reclamam. Quem sabe se essa manifestação tardia não será fruto da meridionalidade?

E se, além do mais, alguém vê hoje falta de patriotismo onde ele sempre esteve presente, tendo sido sempre os mesmos a gerir e os mesmos a ganharem as adjudicações, então é porque alguém andou a dormir.

Em abono do que venho de escrever, cito o que consta do Volume I da obra “The Governance of China”, do Presidente Xi Jinping: “Macao is maintaining a good development trend, its economy is on a steady ride, its society is harmonious and stable, and its people live and work in peace and contentment”. O que Macau tem agora de fazer não é “patriotizar”, mas antes “think of potential problems in times of peace and made a long-term plan” [Main points of the talk with Fernando Chui Sai On, chief executive of the MSAR, December 18, 2013]. Onde está esse plano?

E se em relação a Hong Kong ainda se escreveu que “we hope that people of all walks of life (…) will build a consensus through down-to-earth consultations in accordance with the Basic Law and decisions of the Standing Committee of the NPC, and lay a good foundation for the universal suffrage for the election of the chief executive” (p. 250), aqui, em Macau, nem eu nem ninguém pede tanto.

Na RAEM, como ainda em 7 de Janeiro pp. o Macau Daily Times noticiava, estamos todos conscientes do nosso papel e do nosso caminho.

Quer-me, pois, parecer, que as chamadas de atenção do referido seminário, e daqueles a quem acima me referi, estão na sua boa fé profundamente equivocadas, decorrendo de uma errada apreensão da natureza dos problemas.

Em causa não está, nunca esteve, o patriotismo das gentes locais ou a sua lealdade às instituições, à Constituição da RPC ou às Leis Básicas.

Determinante foi antes, para a situação em que estamos, a falta de patriotismo de muitos dos dirigentes no exercício das suas funções, bem como daqueles a quem foram atribuídas funções de responsabilidade sem nunca terem tido a mais singela manifestação de patriotismo, nem para com Pequim nem para com as gentes locais, quando se tratava de defender os seus próprios interesses face ao interesse colectivo.

E este problema, como bem se compreenderá, não se deveu a falta de manifestações de patriotismo. Daí os equívocos.

Antes, decorreu da genuína falta dele.

Ao lado de muitos outros problemas, como a falta de integridade ética e moral, a ausência de carácter ou a viscosidade intrínseca herdada dos tempos coloniais, a que por economia de espaço, pudor e respeito para com a grande nação chinesa e o povo de Macau, de todos os credos, línguas e etnias, me abstenho de desenvolver.

(Ponto Final, 26 de Fevereiro de 2021)

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