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nebulosidades

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.10.20

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Depois de lidas com a devida atenção as declarações do Senhor Presidente do Tribunal de Última Instância, proferidas na Sessão Solene de Abertura do Ano Judiciário de 2020/2021, importa tecer algumas considerações sobre a parte do seu discurso que fugiu ao ramerrão habitual, entrando em considerações de natureza mais política do que jurídica, a que não estamos habituados, e que fogem à habitual reserva dos senhores magistrados.

Não estou com isto a fazer uma crítica à natureza das observações produzidas, muito menos à pessoa, pois que me parece saudável não só que todos participem na vida pública e opinem sobre os assuntos verdadeiramente importantes que dizem respeito à comunidade; mas porque é igualmente relevante saber o que pensam os nossos mais altos magistrados sobre as matérias que a todos importam, já que isso nos ajudará a melhor compreender o sentido de algumas decisões judiciais por si produzidas.

Naturalmente que quando o fazem também se estão a expor, podendo as suas observações ser, também elas, objecto de crítica e reflexão.

Dito isto, quer-me parecer que não há nada de extraordinário nas declarações do Senhor Presidente do TUI, aliás na linha de outras anteriores e de uma concepção do Direito de Macau e do papel da magistratura judicial que, à luz da nossa tradição jurídica, tenderia a considerar como sui generis.

Na verdade, fazer um apelo à reflexão, como se fez, designadamente sobre “as experiências bem-sucedidas e as deficiências verificadas na aplicação da política de “um país, dois sistemas” em Macau, e “analisar e estudar atentamente os desafios e problemas enfrentados durante a aplicação do sistema jurídico de Macau,” parece-me saudável. Eu próprio muitas vezes o faço.

Dizer que passaram 21 anos sobre o “Retorno de Macau à Pátria” é uma evidência.

Como também é referir que foi no sistema jurídico de Portugal que se inspirou o sistema jurídico de Macau.

Que Portugal é um país do Continente Europeu é verdade desde há mais de oito séculos.

E criticar o regime dos impedimentos dos magistrados judiciais é um direito que lhe assiste, bem como a qualquer um de nós.

Até aqui nada de novo.

Então onde está o busílis que levou a que quer em Portugal quer em Macau tantos se mostrassem preocupados com o que foi dito?

Penso que as declarações produzidas deviam ter sido mais claras, pois que se o tivessem sido não teriam suscitado tantas dúvidas, as quais me parecem em todo o caso pertinentes.

Afirmar a existência de uma concepção de valores, usos e costumes distinta entre Portugal e a China é óbvio. O guanxi (关系) enquanto tal não existe em Portugal. A noção de face dos chineses é diferente da dos portugueses que, em regra, sendo bem formados, quando erram estão dispostos a assumir o erro e a corrigi-lo de imediato, não ficando melindrados com isso. Porque corrigir o erro faz parte da natureza humana e só os mal-formados não o fazem. E não é o facto de haver uns que são mais ricos e importantes do que outros que isso deixa de ser assim, muito embora a correcção do erro fosse também para Confúcio uma evidência a que todos os homens sérios se deviam ater.

Foi exactamente por existirem diferentes concepções entre o que existia em Macau até 1987 e o que se reconhecia serem as perspectivas dos políticos e órgãos de poder chineses, que a República Popular da China reconheceu, no momento de ser encontrada uma “solução apropriada da questão de Macau legada pelo passado”, entre outras coisas, a necessidade de “os actuais sistemas social e económico”, isto é, os existentes à época, não obstante as diferenças, permanecerem “inalterados, bem como a respectiva maneira de viver”, mantendo-se as leis “basicamente inalteradas”.

Assim como a RPC também aceitou, comprometendo-se expressamente, que os princípios e as “políticas fundamentais” mencionadas no Anexo I da Declaração Conjunta e que foram incorporados na Lei Básica de Macau “permanecerão inalterados durante cinquenta anos”.

E não foi uma hipotética dificuldade de transposição de valores, usos, costumes, património cultural e produto de uma diferente visão da vida e do mundo que levou a RPC a recuar nesse compromisso que, minha interpretação, o Senhor Presidente do TUI gostaria de ver corrigido.

Não há, nunca houve, qualquer dificuldade de transposição para Macau do direito português, e tanto assim foi que este sempre conviveu, e bem, com os usos e costumes chineses durante séculos. E de tal forma que a RPC e todos os líderes da China o reconheceram.

Além de que a exiguidade da dimensão de Macau nunca impediu a transposição e aplicação do direito português, ou de raiz portuguesa, em Macau.

Aliás, a reforma do direito chinês empreendida após 1979 bebeu muito dos direitos continentais europeus, designadamente dos direitos de raiz romano-germânica, não tendo sido por causa da diferença de valores, por exemplo, entre a Alemanha e a China, que as universidades chinesas deixaram de ir buscar professores à Europa para ajudarem à modernização e actualização do “direito” herdado da Revolução Cultural. Ainda me recordo bem do que vi e ouvi na Universidade de Sun Yat-Sen em 1988.

Acresce que, por outro lado, quanto ao regime de impedimentos, não é a dimensão de Macau que impede o seu funcionamento. Esse regime nunca deixou de estar em vigor antes e depois de 1999, e não foi por ele antes estar em vigor que se deixou de julgar, ainda que umas vezes bem, outras menos bem e nalgumas mal. Nada disso é ou foi problema dos impedimentos.

A mim também me parece excessivo o número de pedidos de escusa formulados pelos senhores magistrados, e do qual só fiquei a saber pelo discurso do Senhor Presidente do TUI. Mas, quanto a mim, tal número não tem a ver com o regime de impedimentos: antes com uma cultura paroquial e de súbdito, enraizada em Macau e nas suas elites, que tem o medo como vector dominante. É o medo de desagradar, de julgar num sentido que possa ser considerado desafiante para as instituições, para o poder político ou os senhores poderosos, ou de ser objecto de crítica por alguns maiorais provinciais ou pelos lobbies locais.

Todavia, o medo não é um problema do regime de impedimentos. É sim um problema de mentalidade, de formação e, provavelmente, nalguns casos, de formação do carácter. O que, de qualquer modo, não justifica que se mexa no regime dos impedimentos ou que se atirem as culpas para o sistema jurídico ou o direito de raiz portuguesa.

Igualmente me preocupa, e não é coisa de agora, que sobre quem acusa ou julga não haja a mínima suspeita sobre a imparcialidade, a independência e a autonomia de quem exerce o seu múnus.

Não creio é que por alguns exemplos (maus) do passado seja necessário mexer no que a China se comprometeu a respeitar até ao final do período de transição de cinquenta anos.

Pois que, como múltiplas vezes tive oportunidade de afirmar, a Declaração Conjunta é um tratado internacional depositado pelas altas partes contratantes junto da Organização das Nações Unidas, entidade que Portugal e China integram. Nada os obrigava a depositá-lo nessa instância. Se o fizeram é porque queriam que lhe fosse dado o relevo internacional merecido. E por razões de confiança, paz e segurança jurídica que era preciso transmitir aos residentes e à comunidade internacional.

Estou seguro de que para a RPC a Declaração Conjunta Luso-Chinesa não se tratou de um tratado desigual, que lhe tivesse sido imposto pela força por um pequeno país como Portugal, para que ao fim de tão pouco tempo, e ainda tão longe do seu decesso, o mais alto magistrado dos tribunais da RAEM viesse apresentar publicamente um rol de queixas e apreensões que, não deixando de ser legítimas, introduzem mais um elemento de incerteza, instabilidade e insegurança onde estas deviam estar ausentes. Mais a mais num período difícil da conjuntura interna e internacional, sendo que tais declarações são susceptíveis de acrescentar às existentes preocupações desnecessárias à vida política, jurídica e social da RAEM, enfraquecendo a posição do Chefe do Executivo e da RPC na cena internacional.

Até porque, sendo a RPC parte de centenas de tratados e convenções multilaterais e bilaterais, e constituindo um dos Estados que aceitou a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, procedendo ao depósito do instrumento de acessão em 1997 e não manifestando quaisquer reservas ao artigo 62.º (“A fundamental change of circumstances may not be invoked as a ground for terminating or withdrawing from a treaty: (a) If the treaty establishes a boundary; or (b) If the fundamental change is the result of a breach by the party invoking it either of an obligation under the treaty or of any other international obligation owed to any other party to the treaty.”), ela sabe que isso significa, enquanto estiver em vigor a Declaração Conjunta Luso-Chinesa, que esta terá de ser cumprida nos precisos termos em que as partes se vincularam, e longe de interpretações sem qualquer correspondência no espírito e no texto do Tratado.

O princípio do cumprimento integral dos tratados é uma norma de direito internacional público universalmente reconhecida e aceite pelos Estados que compõem a comunidade internacional, não existindo qualquer justificação que faculte a introdução de uma excepção a essa regra.

De igual modo, a China também reconheceu e aceita a validade da norma constante do art.º 26.º dessa Convenção, na medida em que também o princípio pacta sunt servanda (“Every treaty in force is binding upon the parties to it and must be performed by them in good faith.”) aí consagrado mantém plena actualidade e todo o seu alcance.

Não há mal nenhum em discutirem-se estas questões. Não há, não deve haver, assuntos indiscutíveis. E algumas das preocupações manifestadas pelo Senhor Presidente do TUI terão o seu sentido. Pelo menos na sua perspectiva. Nada a dizer.

Só que isso não invalida que as suas declarações, pela forma e local onde foram colocadas as questões que o apoquentam, acabem por ter um efeito bem mais pernicioso do que aquele que foi tido em vista pelo declarante, colocando-o, atento o seu estatuto e responsabilidades, numa posição desconfortável; logo agravada pelas declarações de imediato proferidas pelo Senhor Chefe do Executivo no mesmo evento.

Desconforto que será extensivo à RPC – cujo estatuto e responsabilidades internacionais são indiscutíveis –, e a todos aqueles que confiam no valor da palavra dada e assinada, e que quase 21 anos depois de instituída a RAEM continuam a contar com uma interpretação rigorosa e de acordo com princípios universalmente aceites quer da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, quer da Lei Básica da RAEM.

Instrumentos jurídicos que todos os residentes, qualquer que seja a nossa nacionalidade, raça, credo ou etnia, temos o dever de proteger e defender.

Sem hipocrisia e sem a personalização das questões, tão típica dos lugarejos. Também sem fáceis e questionáveis oportunismos circunstanciais, como alguns fazem de cada vez que vêem um microfone.

Mas sempre, sempre, de forma elevada, séria, honrada, digna e consistente. Pois que é desta massa que são feitas as relações entre gente de carácter, que se respeita e é capaz de falar a mesma linguagem independentemente da diferença de opiniões. 

É preciso afastar a nebulosidade dos últimos dias e colocar as coisas no seu devido lugar.

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