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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Os efeitos da COVID-19, para além de toda a carga de problemas que acarreta ao nível da função respiratória, continuam a agravar-se. Verifico hoje que a doença também tem consequências graves ao nível cognitivo e no exercício de funções políticas em algumas pessoas que embora usando máscara circulam por aí sem quaisquer restrições e falam aos jornais, às televisões e às rádios.
Apercebi-me desse problema pela primeira vez quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros da RPC realizou um pequeno périplo por cinco países europeus (Itália, Países Baixos, Noruega, França e Alemanha) entre o final de Agosto e o início do corrente mês de Setembro. O sentido de algumas das declarações que então produziu, e a forma como as fez, deixaram-me intrigado sobre quem seriam os seus verdadeiros destinatários. Não é crível que o mais alto responsável da diplomacia de um país se dirija ao estrangeiro para produzir declarações para consumo interno. Se o objectivo era falar para os visitados e seus povos também não seria razoável partir do princípio de que os destinatários seriam mentecaptos.
Logo depois vieram as declarações da líder de Hong Kong, Carrie Lam, sobre o princípio da separação de poderes que me deixaram preocupado. É que foram de tal ordem que a Hong Kong Bar Association se sentiu na necessidade de logo emitir um comunicado para colocar os pontos nos iis.
Aqui em Macau, como é norma, houve logo quem se apressasse a chegar-se à frente e viesse dizer coisas tão hilariantes como “o conceito de separação de poderes só se pode aplicar em Estados soberanos” (pobres alunos), que em Macau “não existe uma separação óbvia de poderes”, que aqui existe um regime político com clara predominância do Chefe do Executivo e que, imagine-se, o “facto de se definir o princípio “um país, dois sistemas” não significa que Hong Kong e Macau fossem adoptar o modelo ocidental da separação de poderes”.
Fui ouvindo, e lendo, estas coisas sem perceber muito bem se se tratavam de boutades dadas por gente espirituosa, se afirmações para serem levadas a sério, ou se casos perdidos.
Quando ouvi a última das referidas frases até nem estranhei demasiado, uma vez que vinha de alguém que convencido de que tem graça se especializou em dizer chistes sobre coisas sérias, fazer de conta, e apresentar justificações para algumas das ovelhas que compõem o seu rebanho. Sim, porque não é com afirmações dessas que se apela à inteligência.
Um dia poderei discutir o tema da separação de poderes noutra sede, mas é importante que não se deixe o COVID-19 iludir a opinião pública.
Desde logo, porque não é o facto de haver um sistema de governo com clara predominância do Chefe do Executivo que afasta a separação de poderes em Macau ou em qualquer outro lado.
Nos sistemas presidencialistas também existe uma clara predominância de um dos poderes e nem por isso alguém se atreverá a dizer que nos Estados Unidos ou no Brasil não existe separação de poderes. E da mesma forma que há presidencialismos democráticos também há presidencialismos autoritários, como distinguia Duverger, sem que por isso deixe de existir separação de poderes.
O federalismo caracteriza-se mesmo por ser uma forma de estado que radica numa união de estados e em que cada estado abdica da sua soberania plena para manter uma autonomia política limitada. O país não deixa de estar unificado pelo facto de existir separação de poderes.
Depois, porque a separação de poderes também não existe só em Estados soberanos. Já vem da Grécia e da antiguidade clássica. E foi teorizada por Locke e Montesquieu. Como sublinhava Lowenstein, é a preponderância do presidente no seio dos poderes que dá a característica fundamental ao regime de que os EUA constituem uma referência, mas nem por isso a separação de poderes deixa de existir. Era só o que faltava.
A separação de poderes é um valor universal e fundamental à existência de um verdadeiro estado de direito. Para quem queira viver num Estado de direito, e não num Estado totalitário ou numa fraudulenta república das concessões onde faz a lei, manda e julga em função da circunstâncias quem tem transitoriamente o poder.
Por outro lado, se a separação de poderes só existisse em estados soberanos, então não existiria separação de poderes em estados federados. Nem em regiões dotada de estatutos autonómicos. Como a Catalunha ou o País Basco. Se o disparate colhesse, os estados que compõem federações, como por exemplo na Alemanha, no Brasil ou nos Estados Unidos da América, também estariam impedidos de ter separação de poderes nos tribunais dos seus estados federados, o que não corresponde à verdade.
Mais forçado, ainda, é dizer-se que “não existe uma separação óbvia de poderes” ou que “o princípio ‘um país, dois sistemas’ seria um afastamento do modelo ocidental da separação de poderes”.
Quem o diz esquece-se que “as políticas fundamentais que o Estado [chinês] aplica em relação a Macau são as já expostas pelo Governo Chinês na Declaração Conjunta Sino-Portuguesa” (Preâmbulo da Lei Básica de Macau), que a manutenção do sistema capitalista e do modelo de vida anteriormente existentes, consagrados no artigo 5.º, pressupõem o respeito pelo modelo da separação de poderes durante cinquenta anos, e que os artigos 16.º, 17.º e 19.º da Lei Básica, entre outros, consagram em termos expressos e inequívocos uma mais do que óbvia separação de poderes. Entra pelos olhos.
A mim não me faz qualquer confusão que haja quem queira acabar com o princípio da separação de poderes na RAEM e agradar a quem os mandou para cá. Ou que haja outros, sem qualquer vergonha na fronha, que queiram agradar a quem lhes paga os subsídios. A asneira é livre.
Como não me causa espécie que os assalariados dos partidos políticos, os dirigentes de estados autoritários, os governantes com inclinações prepotentes ou um qualquer chefe mafioso veja no princípio da separação de poderes – que é antes de tudo o mais um princípio de boa governação, de transparência e de responsabilização política de quem manda nos estados civilizados, e uma garantia de uma justiça verdadeiramente independente –, uma ameaça ao poder do Partido Comunista Chinês e um empecilho aos arbítrios dos poderes políticos e administrativos e às negociatas de alguns gangues empresariais.
Se o objectivo de quem negociou as Declarações Conjuntas Sino-Britânica e Luso-Chinesa tivesse sido o de acabar com a separação de poderes e com as sociedades ocidentalizadas que aqui existiam antes de 1997 e 1999, não haveria necessidade de ter negociado coisa alguma, de o ter feito constar de tratados depositados nas Nações Unidas e dados a conhecer ao mundo. Bastaria ter feito com Hong Kong e Macau o que Putin fez na Crimeia. Mandava-se o Exército Popular tomar conta disto, a pedido dos compatriotas que foram enganados com as concessões de terrenos, e estava o assunto arrumado enquanto o diabo esfregava um olho. Não se perdia tempo a enganar os interlocutores que negociaram aqueles textos, nem as pessoas – nacionais e estrangeiros – que confiaram na palavra dada.
A bem dizer, a única coisa que me deixa intrigado é não encontrar resposta para a questão de saber se com tais afirmações, tirando os habituais tristes, as aventesmas e amanuenses locais, e os medíocres assalariados da praxe, haverá alguém convencido de que elas produzem algum efeito útil. Nas pessoas normais, digo eu. Em gente que pense.
O COVID-19 não perdoa. Estou hoje plenamente convencido de que nalgumas pessoas os seus efeitos manifestam-se no modo como olham para o presente e encaram o futuro. No modo como se predispõem a distorcer a realidade para a acomodarem aos seus interesses e dos seus amos.
A OMS devia saber disto. É terrível. E não há vacina que os salve.