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cinemateca

por Sérgio de Almeida Correia, em 22.06.20

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(foto daqui)

Estou convencido de que o imbróglio da adjudicação da "Prestação de Serviços de Operação da Cinemateca Paixão", de Agosto de 2020 até Julho de 2023, por parte do Instituto Cultural (ICM), a uma sociedade "semi-fantasma", com o capital social de MOP$25.000 (vinte cinco mil patacas), e cujo objecto social reproduz a sua própria denominação ("produção de entretenimento e cultura"), ainda vai dar muito que falar.

Desde logo, porque de uma sociedade com um objecto social tão "vago" (produção de entretenimento de que tipo?; produção de que cultura?) se pode esperar que sirva para tudo e mais alguma coisa. De espectáculos de marionetas à venda de pipocas, sem esquecer a cultura da batata, tudo é possível, o que de certa forma explica o motivo para que da sua actividade comercial pública anterior os jornalistas apenas tenham conseguido apurar que a vencedora participou, embora sem sucesso, no concurso para exploração da "loja de recordações da Casa do Mandarim".  

Se em causa estava a prestação de serviços de exploração de uma cinemateca, pública, o mínimo que seria de esperar era que a entidade adjudicatária possuísse experiência numa qualquer área ligada à Sétima Arte, fosse minimamente conhecida no meio em que se insere, e que para além de se sentir confortável a explorar lojas de recordações, também estivesse confortável em matéria de produção ou patrocínio da realização de filmes, de organização de festivais, de ciclos de cinema, de workshops, de programação, ou a exploração comercial de salas de cinema, e ostentasse alguma experiência de contactos internacionais, só para dar algumas hipóteses possíveis.

E se não fosse a própria empresa concorrente experiente, pois que poderia ser uma entidade recém-constituída expressamente para a participação no concurso, daí não vindo mal ao mundo, pelo menos que os seus sócios e parceiros apresentassem um currículo e know-how nas áreas em causa. E não propriamente na venda de pirolitos, pipocas, gelados, brindes publicitários ou, eventualmente, em actividades de lobbying.  

Curiosamente, num concurso com o grau de especialização que seria exigível para a prestação de serviços de exploração de uma cinemateca, imaginar-se-ia que a qualificação e a experiência dos concorrentes valessem mais do que os míseros 14% que foram atribuídos à "experiência do concorrente e do director de operações", ou os apenas 6% dedicados à "experiência do consultor", como factores de ponderação para aqueles dois critérios de adjudicação.

Não tive oportunidade de discutir esta temática com Paulo Branco quando ele cá esteve em Dezembro, mas penso que com um consultor de uma cinemateca a valer 6% num concurso, estou certo de que uma associação de arrumadores de salas de espectáculos de Lisboa estaria habilitada a atingir o máximo da ponderação nesse item.

Tudo isto se torna ainda mais enigmático (e triste) quando se vêem quais as obrigações a que o adjudicatário deverá dar resposta e se verifica que os referidos (14%) englobam  (i) a prestação de um serviço de projecções públicas,  (ii) a prestação de serviços de realização de festivais de cinema (num mínimo de cinco, sendo um internacional), a que se juntam (iii) a realização de exposições, (iv) a realização de outras actividades relacionadas com o cinema, (v) o arrendamento da sala de projecção (que de todos os serviços será o que menor especialização exige), (vi) a gestão da sala de documentação fotográfica, para além de (vii) serviços de marketing e promoção, de (viii) programação e exibição de filmes do próprio ICM, e (ix) a programação e projecção de publicidade.

É, por isso, incompreensível que um serviço como o Instituto Cultural de Macau, perante o grau de exigência e de especialização das tarefas a realizar, se permita atribuir entre os critérios e factores de ponderação 40% ao preço e 40% ao grau de perfeição da proposta, com o que se perfazem 80%. 

Quer isto dizer que para o ICM a prestação de serviços numa área tão qualificada do ponto de vista cultural, como é a da exploração e gestão de uma cinemateca, com obrigações de serviço público, é mais ou menos equivalente à gestão e exploração de uma salsicharia em que o que importa é o preço do quilo da salsicha e a embalagem em que estas vêm, independentemente da qualidade da carne, do sabor e da gordura que venha no seu interior.

Um concurso organizado nos termos em que este foi, e o problema não estará apenas na adjudicação, permite por força das próprias regras os maiores cambalachos, sendo depois perfeitamente possível – e eu só estou a teorizar, nada de confusões –, que qualquer vendedor de banha da cobra, bem apessoado e protegido por quem tenha ligações ao poder, que até pode ser um irmão, uma cunhada ou o primo afastado de alguém importante, se possa apresentar e vencer qualquer concurso desde que ofereça um preço baixo e tenha encomendado e pago uma proposta a um especialista da área. O resto virá por acréscimo depois de vencido o concurso e de feita a adjudicação (recorde-se o que aconteceu com o Centro Cultural de Macau e veja-se o estado em que aquilo está, desde há vários anos, da programação à exploração do bar de apoio). 

Quanto ao mais, isto é, no que à garantia de execução da proposta vencedora e ao cumprimento das obrigações de serviço público, para o ICM isso é o que menos importância tem (é a minha conclusão), podendo-se cair no extremo, apesar de não ter sido esse o caso, penso eu, de um concorrente "A", cuja proposta seja uma pataca mais cara do que o concorrente "B", e não tenha uma embalagem tão vistosa quanto a deste último, ser preterido apesar de ter no seu currículo a organização de múltiplos festivais internacionais, um leque de consultores de referência e uma vasta e qualificada experiência na matéria a concurso. Para o ICM nada disto tem peso significativo. Vale apenas 20% no cômputo geral.

Não é, assim, de estranhar, depois do que aconteceu com o Festival Internacional de Cinema, e das tarefas que no âmbito deste foram cometidas a uma associação que se tinha acabado de constituir, tenha agora acontecido este triste espectáculo com o concurso da Cinemateca Paixão.

De um concurso público espera-se que as suas regras, dentro do possível, sejam inatacáveis, correspondendo aos objectivos de interesse público, respeitando-se, entre outros, princípios de justiça, de imparcialidade e de transparência. Tudo menos obscuridade, desculpas esfarrapadas, fuga à verdade e ao esclarecimento público, além de uma mentira descarada por alguém que falou em nome da vencedora.

A justificação de que o responsável da futura adjudicatária não podia prestar os esclarecimentos por que todos esperavam em razão do facto de estar num festival internacional de cinema, em Cannes, que toda a gente sabia que tinha sido há muito cancelado, tem tanto de hilariante como de desplante.

Mas, infelizmente, é esta a imagem requentada daquilo que muitos suspeitam (nalguns casos mais do que isso) estar a acontecer há muitos anos em matéria de concursos no dia-a-dia da RAEM, onde com a conivência de alguns se procurou sempre preservar a verdade formal, a imagem em detrimento da seriedade, da transparência e de uma efectiva protecção do interesse público.

Tanto assim que é possível, por mero lapso, e não apenas em teoria, ganhar um concurso por ajuste directo com uma proposta preparada ao abrigo de uma carta-convite, que entretanto desapareceu do serviço público, antes do despacho de autorização para a abertura do próprio concurso, e descrevendo-se como própria a experiência de quem nem sequer se apresentou a concurso, nem mesmo como sócio da entidade vencedora.

Confesso por isso que nada disto me admira. Entristece, revolta, mas não espanta.

Porém, esperava que o Chefe do Executivo, com todo o gás e vontade de reforma com que chegou, e da qual não duvido, não tivesse permitido um coisa destas quando passam apenas seis meses sobre o início do seu mandato e 4/5 dele foram dedicados a combater o COVID-19 e as suas nefastas consequências.

Ainda todos nos lembramos do que sucedeu com Marco Müller. E continuamos à espera de saber da acção judicial que ameaçaram intentar contra ele pelos prejuízos causados com a sua demissão ao Festival Internacional de Cinema e à imagem de Macau. 

A participação num concurso público envolve muito trabalho e custos. Para quem não anda em "esquemas". Uma equipa ou uma empresa decente pode participar uma, duas ou muitas vezes se as regras forem sérias, e não susceptíveis a golpadas. Deixará de participar se ficar com a sensação de que o concurso é a cortina para mais uma negociata qualquer. E nesse caso quem perde somos todos nós, os cidadãos, os seus filhos e netos, a sociedade no seu todo, incluindo os empresários sérios que podem ajudar a criar riqueza, diversificar e melhorar a nossa vida.

Por isso, o mínimo que se pode agora exigir é que, sendo tantas as dúvidas e as perguntas sem resposta geradas por este estranho processo concursal da Cinemateca Paixão, se peça ao Senhor Comissário Contra a Corrupção que investigue, sem paixão, e esclareça tudo o que aconteceu, e como aconteceu, tintim por tintim, desfazendo as dúvidas ou promovendo o que tiver que promover.

A bem da transparência e da reputação da Administração Pública da RAEM de cada vez que organiza concursos públicos. Chega de sombra, de suspeição e de rumor. A bem do princípio "um país, dois sistemas".

Para que a culpa não siga morrendo solteira, ou escondida nos subterfúgios jurídicos de um qualquer processo judicial.

E também para que daqui a uns anos não continue tudo a ser o resultado da acção de Ao Man Long, do ex-Procurador, do anterior Chefe do Executivo ou do "despesista" que estava nos Assuntos Sociais e na Cultura, enquanto os seus "sósias" prosperam discretamente na sombra. Costas largas sim, mas não tanto.

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