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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(Museo Nazionale di Capodimonte, Napoli, Italia, The Flagellation of Christ, c.1607, Michelangelo Merisi da Caravaggio)
Não me recordo de quando o conheci porque me lembro dele desde que tenho memória de mim.
Quando nasci, ele ainda vivia em Gondola, onde era médico. Passara antes pelo Vale do Limpopo, que percorreu de lés a lés, com sol, chuva ou calor, qualquer que fosse o nível de humidade.
Filho de um empresário desafogado ligado à fundação e aos tempos de ouro do Hotel Avenida Palace, a sua família tinha raízes em Ovar. Ele já nasceu em Lisboa, em S. Jorge de Arroios, de onde voltaria a partir, ainda miúdo, para frequentar o Colégio dos Carvalhos.
Falou-me desses tempos duros por que passou, longe da família e comendo rancho quase diariamente, sem, no entanto, deixar de sublinhar a excelência da educação que lhe foi ministrada. Talvez tenha sido aí que adquiriu apreço pelo rigor, pela arrumação, pela organização, pelo cumprimento de horários. E também pela liberdade.
Ainda jovem, perdeu o pai a assistir a um jogo de futebol, no velho Estádio da Luz, para cuja construção também contribuíra, creio que pouco depois da sua inauguração. Contou-me que estavam a preparar-se para o início da partida, com a bola ao centro, quando de repente, a seu lado, o pai tombou inanimado, no momento em que se preparava para acender um charuto.
Mais tarde dir-me-ia que o seu destino ficara marcado por esse fatídico momento.
Acabaria por se licenciar pela Faculdade de Medicina de Lisboa, ainda no Campo de Santana. De vez em quando contava-me episódios curiosos desses tempos em que não havia computadores, faxes ou Internet e o céu de Lisboa seria mais azul.
Os primeiros anos de exercício da profissão seguir-se-iam no Curry Cabral, mas depois do seu envolvimento com a oposição democrática e com o MUD juvenil, e a assinatura das listas de apoio aos candidatos presidenciais que defendiam a mudança de regime, Norton de Matos e, mais tarde, Humberto Delgado, percebeu que profissionalmente ficara com as pernas cortadas nos Hospitais Civis. Uma chamada à António Maria Cardoso, porque, dizia ele, queriam perguntar-lhe o nome, e ficou despachado o seu futuro na Metrópole. Daí até Moçambique foi um pequeno salto.
Para lá partiu sem saber o que iria encontrar. A ele se juntariam, anos mais tarde, a mãe viúva e a única irmã. Desta última, de quem ouvi que seria mulher de grande classe e elegância, havia lá em casa uma belíssima natureza-morta. Quando chegou a Moçambique, a Maria Luísa, assim se chamava, tornou-se amiga da Mélita, minha Mãe, mas acabaria por morrer prematuramente com um cancro, pelo que não me lembro sequer de a ter conhecido.
Eu nasci em 1962, dando-se a circunstância de termos chegado ao mundo no mesmo dia de calendário. E como já conhecia a família toda, sempre com a paciência de a muitos cuidar das maleitas, tornar-se-ia no meu padrinho. No Padrinho, porque a partir daí, com excepção de alguns sobrinhos “emprestados”, como ele dizia, que por vezes o tratavam por tio, passou a ser o Padrinho. O meu e de todos os outros, incluindo os de circunstância.
As minhas primeiras memórias dele são, pois, de meados dos anos sessenta do século passado, na Beira, mas igualmente de Lourenço Marques, onde me recordo de termos estado, num tempo em que ele ainda passara por umas curtas experiências no karting, e de me terem levado a passear.
Como médico dos Caminhos de Ferro, primeiro de Moçambique, a seguir na Beira, onde se distinguiu pela forma como a todos tratava, dos mais pobres aos mais abonados, num múnus que exercia sem horário durante todas as horas do dia e sempre disponível, fosse para receber os queixosos na inconfundível Estação dos Caminhos de Ferro, ou visitar quem dele precisava, em casa ou na palhota, tinha tudo para vir a ser feliz longe da capital do império.
Ao lado da mulher que amava, e que o amou até à morte, com um grupo de amigos absolutamente único, com os quais se dedicava à leitura, ao cinema, ao ensaio e à crítica literária, onde primavam alguns colegas, amigos escritores e poetas, entre os quais recordo o Gouveia Lemos, o Craveirinha e o Rui Knopfli, chegou a colaborar, episodicamente, no suplemento literário de “A Tribuna”, que nos anos 60 marcou uma época na história da literatura portuguesa de raízes africanistas — e onde se terá dado a “abrilada moçambicana”, dizia ele —; e sei que ganhou um prémio num concurso de contos, com um texto belíssimo que acabaria por ver publicado numa colectânea.
Em 1968, com 48 anos, numa visita ao oftalmologista, diagnosticaram-lhe um problema de cataratas. Como na Beira não existissem meios adequados, nem especialistas aptos à realização de uma operação dessa natureza, tratou de marcar a intervenção para ser feita na África do Sul. Já em Lourenço Marques, quando tratava dos preparativos da viagem, um colega que aí exercia disse-lhe que era um disparate viajar para o país vizinho para realizar uma operação tão simples, porque ele próprio estava habituadíssimo a fazê-lo, e que podia operá-lo logo no dia seguinte, ali mesmo. Acreditando no que lhe era dito, confiando na competência do colega, que pensou ser como ele, cancelou a cirurgia que iria fazer a Joanesburgo e entregou-se às mãos que de uma assentada, e tão expeditamente quanto se revelou possível, o operaram aos dois olhos.
Passados alguns dias, quando lhe foi dada alta e o mandaram para casa, recordo-me de ter ido visitá-lo. Ainda estava com os olhos tapados e de óculos escuros. Na semana seguinte, ouvi dizerem que não havia evolução, porque embora o Padrinho conseguisse distinguir algumas cores nas molas da roupa, estava progressivamente a ver tudo acinzentado.
O que se seguiu foi um longo e doloroso calvário.
Perdeu progressivamente o pouco que ainda via, e as sombras tornaram-se cada vez mais escuras, até serem breu. Em Setembro desse ano foi de novo operado, já em Lisboa, no Hospital da Cruz Vermelha, ficando instalado num quarto paredes-meias com “o Botas”, que caíra da cadeira na mesma ocasião. Visitei-o ali, no dia em que ambos fazíamos anos. E creio que terá sido essa a primeira vez em que senti de facto a tristeza.
Nos anos seguintes, não tendo havido sucesso na intervenção realizada em Lisboa, o Padrinho foi então à África do Sul, a que se seguiu uma visita a Barcelona, onde o primeiro e o mais famoso dos Barraquer lhe disse que o problema só se resolveria com um enxerto das córneas, mas que ele nunca o tinha feito e que se ele quisesse ser operado seria como uma lotaria. Se corresse bem, o Padrinho recuperaria a visão e ficariam ambos famosos. Ganhariam o El Gordo. Se corresse mal, ele regressaria a Lisboa e nas Ramblas a vida seguiria igual.
Perante o que lhe foi dito, sem querer voltar a confiar na sorte que há tanto lhe fugia, rumou a Inglaterra onde, com o apoio da Maria Isabel, seria operado no Queen Elizabeth pelo que era ao tempo o oftalmologista da Casa Real. Tinha tudo para correr bem, voltou a correr mal.
Em Londres retiraram-lhe uns drenos minúsculos que o sapateiro encartado que o operara em Lourenço Marques, e que depois veio exercer para Lisboa, deixara lá ficar, e que até aí ninguém incrivelmente vira. O talhante esquecera-se de os remover quando lhe tirou os pontos. E aqueles deram-lhe cabo dos olhos durante três ou quatro anos. Quando analisaram o fio que tinha sido utilizado para o suturarem na primeira intervenção, disseram-lhe que naquela altura, em Londres, aquele tipo e espessura de linha só servia para “coser barrigas”.
Em tratamento ambulatório permanente, a etapa que se seguiu levá-lo-ia a Lyon, ao Prof. Charleur. Cirurgia no dia do levantamento das Caldas, em 1974, e fizeram-lhe dois enxertos nas córneas. Ainda em convalescença, na clínica onde ficou durante alguns dias, disseram-lhe de uma tentativa de golpe em Portugal, coisa em que também já pouco acreditava.
A operação correu bem e duas semanas depois estava de regresso a Lisboa.
Não obstante as circunstâncias em que era obrigado a deslocar-se ao exterior, nunca deixava de me trazer qualquer coisa. De Londres viera uma réplica da Apolo 11, a pilhas, que levantava e pousava, fazendo as minhas delícias. De Lyon chegaram as minhas primeiras chuteiras “com pitões”. Da Adidas. Um luxo nesses tempos. E com as chuteiras veio também a recomendação de que não poderia constipar-se. E, mais importante, não podia espirrar. O regresso ficaria marcado para meados de Abril para lhe retirarem os pontos.
O golpe de 25 de Abril obrigou ao adiamento da deslocação, que acabaria por só ter lugar em Maio. E também me recordo de acordar nesse dia da revolução e de me dizerem que não poderia ir à escola, o que para mim seria uma grande chatice. O Padrinho passou o dia com os ouvidos colados ao rádio-móvel da Schaub-Lorenz. Nesse dia não me deixaram fazer o percurso entre a Augusto Gil e a Avenida de Madrid.
Quando o Padrinho voltou a Lyon já era demasiado tarde. Pelo caminho constipara-se, espirrou repetidas vezes, os pontos rebentaram. Mais um desastre que ofuscou a sua alegria, momentânea, pelo 25 de Abril.
Em Lisboa, primeiro, em especial com o Prof. Ferraz de Oliveira, a quem muito estimava e que ainda conhecera em Moçambique, do tempo em que aquele por lá passou para cumprir o serviço militar, e muito anos volvidos, talvez uns vinte, em Coimbra, outros tentaram fazer os impossíveis para lhe restituírem a visão. Sem sucesso.
Ano após ano percorreu as calçadas que lhe estavam reservadas, recusando-se a aceitar o seu destino, rejeitando bengalas e processos de aprendizagem próprios de quem está na sua condição, com excepção do braile, de que ainda chegou a fazer uso para “ler” algumas obras, como Kundera, que já não era do seu tempo saudável e de quem ouvira falar.
Ao longo da minha vida, mesmo depois de me tornar adulto, em virtude da estupenda memória que tinha, deu-me a conhecer inúmeros livros. Era senhor de uma fantástica biblioteca que aos poucos me foi passando. Ao meu irmão, que foi para Santa Maria, cabiam os livros de medicina.
À medida que eu crescia e evoluía, por vezes em razão das descobertas que fazia e das interrogações que suscitava depois de passar umas horas na Livraria Barata, onde chegou a haver um banquinho colocado pelo dono para que eu, e outros curiosos como eu pudessem ler sem estorvar ninguém, recordava-me o que havia na biblioteca lá de casa, a que se seguia, invariavelmente, um “depois leva esses livros, eles hão-de ser todos para a ti, a mim já não me servem para nada e o C.J. não precisa deles”.
Foi assim que recebi algumas primeiras edições do Eça e do Pessoa, Fernando como ele, como S. António, por quem tinha alguma admiração, já que a devoção nunca fora o seu forte e há muito a perdera perante a cruz que carregava.
Com o Padrinho cheguei a Rimbaud, Stendhal, Hugo, Schopenhauer, Kierkegaard, Rousseau, Proust, Maupassant, Gide, Camus, Sartre, Beauvoir; aos brasileiros, também a Unamuno, Lorca, Machado; ao Sena, à Sophia, a Brecht, ao Santareno, ao Gomes Ferreira, sei lá, a uma infinidade de gente que sabia sentir, escrever e pensar, e que nos ajudava a pensar, e a olhar para o mundo e para nós, os mortais, com olhos de ver, da literatura à pintura, da música à canção francesa e italiana, e do jazz até à "senhora D. Amália", que eu jamais conheceria e apreciaria sem a sua ajuda.
Os últimos anos, com os sucessivos impasses e os desastres político-governativos em que o país se foi imolando, e que lhe cortaram a pequena reforma, aumentou a sua descrença em relação aos políticos e aos partidos que nos saíram na rifa. "Gente medíocre, gente que não presta, e os que prestam não querem saber de nós".
Contudo, queria sempre saber o que eu andava a fazer, a ler ou a investigar, e a que conclusões chegava, sem que jamais o ouvisse criticar as minhas áreas de estudo, ou, em dado momento, a minha esporádica intervenção política enquadrada, acompanhando-a mesmo com algum interesse.
Uma das últimas vezes em que o recordo bem disposto foi no dia do meu casamento. Disse-me várias vezes o quanto gostava da minha mulher. E num dos últimos Natais em minha casa, quando ainda vivia em Portugal, guloso com a canja de perdiz e o bacalhau espiritual ou elogiando a macieza do cabrito assado, logo ele que detestava "carne da testa", voltou a elogiar-lhe os dotes e a paciência.
A distância e as dificuldades da vida roubaram-nos infindáveis horas de conversa, que sempre o distraíam, por vezes de leitura em voz alta, fossem artigos de jornal ou trechos de livros que eu lera e apreciara, e depois levava para lhe ler quando passava lá por casa.
Lembro-me de todas as suas interrogações quando numa tarde lhe li umas quantas passagens de um ensaio da Maria Filomena Mónica sobre a morte. E dos comentários que fez sobre trechos das memórias do Almeida Santos, que propositadamente levei para ouvir os seus comentários, de um tempo colonial em que ambos, tal como o meu Pai, foram participantes. Limitou-se a dizer-me que ele sabia escrever com propriedade. E de como apreciou o “Cão como Nós”, e outros escritos do Alegre, de quem não gostava como político, e que "se fosse tão bom político como escritor talvez nos safássemos". A esquerda, a política, há muito que morrera para ele.
Acompanhava os relatos de futebol, gostava de ouvir as notícias da Renascença e a Bola Branca (seria este o nome do programa?), e tinha tanta confiança nos últimos presidentes do Benfica que ao fim de mais de sete décadas de associado desistiu de ser sócio. O que me ele disse, cego, por exemplo, de Vale e Azevedo ou de Vieira, só de os ouvir arengar, é irreproduzível. Apesar disso, quando soube que eu iria participar, com muitos milhares mais, no financiamento do novo Estádio, perguntou-me se não queria uma pequena ajuda. Quando a SAD se formou, como quem não quer a coisa, perguntou-se se estava a pensar comprar algumas acções. Dizendo-lhe que sim, entendeu reforçar o parco pecúlio que eu destinara para esse efeito e esclareceu logo que as acções ficariam em meu nome. Assim se fez.
Dizia-me que estava velho. E com a amargura e a rudeza de quem sente a aproximação ao fim, acrescentava que só não queria que o lixassem mais. Na reforma. Eu compreendia-o e não dizia nada. Sabia que tinha carradas de razão.
Numa das últimas cartas que me enviou, quando a Mélita ainda podia escrever o que ele ditava, lembrou-se de me falar do poema “Amputação”, que o Rui Knopfli lhe dedicou (Algo, em mim, está morto./ O lado direito inerte, ausente,/ de mim está alheio./ Do lado esquerdo o fito,/como se a um outro/ olhasse./ Metade de mim persiste,/ vive,/ e contempla algo, ardendo,/ estiolando,/ que em mim está morto./ Um perfil que apodrece/ e eu vivendo/ e vendo ausentar-se de mim/ algo que em mim está morto/ definitivamente.) na edição do seu primeiro livro, referindo-me que ao fim destes anos todos aquele texto fora premonitório.
Escreveu-me então que “do texto, em si, já não me recordo, mas o título ficou como um sinal de presságio. Não sei se ele tinha os olhos perfurantes e longos dos videntes”. Tinha sim.
E a propósito do que por aí ia, e ainda vou, escrevendo, aqui e ali, e do que alguém lhe lia quando por lá passava, com a sua sabedoria e a infinita amizade que sempre nos uniu, transmitiu-me que já uma vez me tinha mandado dizer, “de forma arredondada”, aquilo que pensava. E acrescentou algo que jamais esquecerei:
“Tenho para mim que não é quixotismo denunciar toda e qualquer forma de injustiça, mas é minha convicção também que os valores e interesses instalados, seja qual for o poder que os suporte, são como moinhos de vento, contra os quais quase sempre é inútil arremeter.
De quanto me foi possível deduzir, as barricadas parisienses de Maio de 68 foram erguidas contra alguns desses interesses e valores — só que o foram pelas mãos de um revolucionarismo inconsequente —, por romântico, por demagógico e por outras razões mais que eu não sei.
Passadas três décadas, os “moinhos” lá continuam no seu afã e, varridas as ruas do entulho revolucionário, já nada deve restar nos vazadouros municipais.
A velha máxima latina “primum vivere deinde philosophare” podia servir de epitáfio (ideia minha) para certos acontecimentos e situações.
Sem dúvida, viver está sempre primeiro!
Longe de mim, com estas palavras, pretender desviar-te do que sintas como imperativo.
Penso que conheces minimamente o chão que pisas e o meio que te rodeia.
Assim sendo, “sem te queimares” aproveita o teu “Sol de Primavera”, porquanto, como tantas outras coisas nesta vida, também "o sonho é fugidio”.
Pegando nesse “sem te queimares” veio-me à lembrança o diálogo havido nas vésperas de Alcácer, entre D. Sebastião e um velho fidalgo que desaprovava a sua empresa africana.
Ao reticente conselheiro terá o Rei perguntado qual era a cor do medo. A resposta terá sido mais ou menos esta: “Senhor, o medo, por vezes, tem a cor da prudência”.
No final da missiva recordava-me que não queria que eu fosse medroso. Ele, que nem sempre o fora, não podia vangloriar-se de o não ter sido porque pagara sempre um alto preço pelos seus erros maiores.
Quando o Rui faleceu, em 2017, em termos tão súbitos, incompreensíveis e por erros sucessivos de outros colegas, acompanhou-me na dor, no desnorte, preocupado com o que eu iria fazer a seguir. E como concluiria o doutoramento.
O falecimento da Mélita foi a machadada que faltava no seu desgosto. Sempre pensara que por ser mais velho iria primeiro. Não quiseram assim os deuses. Voltaram a lixá-lo.
Repetia na sua solidão, implorava até à exaustão, da sua lucidez cansada e desesperada, que o levassem, que não estava cá a fazer nada. Que já chegava, temendo que a longevidade do seu lado materno o fizesse continuar por mais tempo no martírio em que vivia, na escuridão permanente entre chagas e trambolhões, enquanto o corpo mirrava e dobrado se ia vergando ao peso de mais de um século, recriminando quem com carinho e ternura, embora houvesse sempre quem com pouco jeito, o procurava auxiliar no seu infortúnio.
A mim escutou-me sempre. E chegou a pedir-me desculpa pelo que dissera a um ou outro, gente de quem ele sempre gostara e que dele gostava, como se fosse o facto de ser eu a referi-lo, quando com ele falava no desagradável episódio ocorrido, que desse autenticidade ao sucedido e o fizesse descer à terra.
Um dia, já em democracia, quando um alto dirigente africano conhecedor da sua vida, como outros que o conheciam e por vezes apareciam, fez questão de o visitar, e de nos acompanhar numa refeição em sua casa, estando já ele cego há muitos anos, aquele referiu-lhe, não obstante toda a hospitalidade, amizade e confiança, que aqueles aposentos eram “curtos” para acomodar toda a gente. Não éramos mais que seis ou sete pessoas à volta da mesa, mas aquilo caiu mal, e dessa vez a resposta saiu sem diplomacias, certeira e fulminante: “Pois são, tem razão, mas sabe que este colono só trouxe de África a roupa e os livros, e nem a cama onde se deita foi por ele comprada”. Fez-se silêncio. A seguir voltou tudo à normalidade, e jantou-se como sempre.
Preocupava-se, preocupou-se sempre, com a felicidade dos outros. Que os queria felizes, que tinham esse direito, sem jamais perceber a razão da sua própria infelicidade, do seu purgatório, da solidão e do abandono em que Deus, de cuja existência cada vez mais duvidava, o deixara. Nem Santo António o escutava.
Estou seguro que a sua infelicidade se foi tornando maior à medida que sentia o tempo fechar-se à sua volta, sem solução, e que alguns dos que lhe eram mais próximos o foram vendo afastar-se cada vez mais amargurado, rude e agreste no trato.
Pediu que no dia em que morresse o levassem para o Alto de S. João. Se possível que fosse tocada a sinfonia do destino, como que me recordando as infindáveis tardes e noites em que ouvíamos os discos que eu descobria e de que ele gostava. Podia ser Brel, um Requiem ou a Maria João Pires. E queria que o seu diploma o acompanhasse na hora da despedida. A medicina fora a sua paixão maior e a causa da sua tragédia e do seu desencanto. Deixara-o naquele estado amputado, sem poder ler como uma pessoa normal. Não servira para nada, não obstante o brilhantismo da forma como todos os colegas se referiam ao seu saber e ao modo como sempre exerceu a profissão, se dedicou aos seus doentes e transmitiu os seus valores a quem seguiu os seus passos.
A parte do diploma eu não disse a ninguém. Ficam a sabê-lo agora. Guardei-a para mim. Como guardei muitas outras coisas que me disse e que morrerão comigo. O juramento de Hipócrates era para ele mais sagrado que o Santo Sudário. E levara-o a interrogar-se, como médico, muitas vezes, sobre a justeza da consagração legal da eutanásia. Apesar de estar na situação em que estava. Nunca o esquecerei.
Longe, com as fronteiras fechadas, sem aviões, confinado à vista da minha varanda, nesta húmida, inquietante e recortada solidão em que também sobrevivo, deram-me a notícia de que finalmente lhe fora feita a vontade. Do outro lado da linha, disseram-me que o seu sofrimento terminara. Que não fora por causa de nenhum vírus, e que o tinham levado na Quinta-feira de Paixão. A sua via sacra de 101 longos e sofridos anos terminava ali. Solitariamente.
Foi cremado no dia seguinte, Sexta-feira Santa. Não houve velório, não houve missa. Ele não gostava de foguetórios. Só duas ou três pessoas que dele cuidaram até ao fim o acompanharam nessa viagem. Ouviu-se Beethoven.
E sabe-se que não ressuscitará ao terceiro dia. Dizem que isso está reservado ao filho de Deus. Não ao Padrinho.
Por isso resolvi escrever estas linhas. Eles que me desculpem.