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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Cumpre-me deixar aqui um agradecimento especial à TDM e, em especial, à jornalista Rita Tavares-Teles, que apresentou a reportagem sobre a situação, absolutamente inqualificável, em que se encontram cerca de 150 trabalhadores não-residentes (TNR) de origem vietnamita a cujos contratos de trabalho foi colocado termo em razão da actual situação económica e de saúde pública vivida na RAEM por causa do COVID-19.
Esse agradecimento é devido porquanto sem o serviço público que ambas prestaram, a estação de televisão e a jornalista, jamais teríamos conhecimento do que se está a passar com aqueles TNR.
Que tivesse sido colocado termo aos contratos desses trabalhadores numa altura de crise e incerteza, já de si seria mau.
Mandá-los para o desemprego e largá-los sem qualquer apoio durante meses numa altura em que não lhes é possível sair de Macau, por razões a que são totalmente alheios e não lhes podem ser imputadas, com poucos ou nenhuns meios de subsistência, sujeitando-os à ajuda de amigos e conhecidos e de instituições de solidariedade social, obrigando-os a alimentarem-se pessimamente, permitindo que numa região riquíssima sejam tratados de acordo com padrões infra-humanos, revela a falta de um sentido mínimo de amor ao próximo e total ausência de humanidade. É nestas ocasiões que se revela a falta de vergonha e de responsabilidade social de algumas concessionárias do jogo.
Independentemente de se tratarem de pessoas como nós, o simples facto daqueles TNR terem trabalhado para concessionárias cujos lucros têm sido astronómicos no contexto mundial, contribuindo para o seu engrandecimento e para a elevada qualidade de serviço que os hotéis e restaurantes dessas empresas e Macau oferecem a residentes e turistas, mantendo lugar cativo nos rankings internacionais da hotelaria e restauração, coleccionando prémios, estrelas e referências elogiosas, tal deveria obrigar as suas entidades patronais a tratarem-nos de outra forma.
Mas sabendo-se que recebem salários baixíssimos trabalhando imensas horas, com poucas ou nenhumas regalias sociais, vivendo quase em permanência no limbo, durante anos a fio, como quase todos os TNR, e que a alimentação e o alojamento atingem valores incomportáveis para a sua maioria, impondo-lhes muitas vezes viverem em condições de conforto e higiene discutíveis, quando não miseráveis, o mínimo que se poderia esperar das concessionárias era que, tendo feito cessar unilateralmente os contratos de trabalho não abandonassem aquela gente à sua sorte.
Não lhes garantir refeições decentes, um alojamento, assistência médica e apoio nas difíceis situações em que todos vivemos, até ao momento em que possam regressar aos seus locais de origem, sabendo que entre esses seus ex-trabalhadores há inclusivamente duas grávidas, que devido ao facto de não haver ligações de Macau para o Vietname, de não poderem utilizar o aeroporto de Hong Kong para regressar, e dos sucessivos adiamentos (ao longo de meses) dos seus voos serem da responsabilidade de outra concessionária, a Air Macau, daqui não podendo sair, o que acontece contra a sua vontade, é revelador de uma desumanidade grotesca, indigna de pessoas de bem.
E repare-se que ficámos a saber da situação destes desgraçados depois de vários avisos do Chefe do Executivo nas últimas semanas relativamente ao papel que se espera das concessionárias do jogo.
Quanto à Melco Resorts & Entertainment (ex-Melco Crown), a reportagem esclareceu-nos que, para além do alojamento concedido, depois de contactada pela TDM anunciou que ofereceria refeições aos seus ex-trabalhadores até saírem de Macau. Menos mal.
O outro operador de jogo nem sequer respondeu ao contacto da jornalista para se pronunciar sobre o assunto. Isto também é revelador do nível desta classe empresarial do tipo e que gravita em redor da Sands e de Sheldon Adelson, um dos homens mais ricos do mundo, quando se trata de assegurar em Macau, onde a sua riqueza cresceu desmesuradamente (pelo seu empreendedorismo, mas também pela mãozinha que lhe foi dada no concurso e pelas condições que lhe foram oferecidas), os mínimos em termos laborais e humanos.
No entanto, sempre que há uma câmara de televisão por perto, ou para comprarem páginas em jornais e revistas, estas concessionárias estão prontas para fazerem flores, mostrarem as máscaras que interesseiramente oferecem ao Governo da RAEM ou os milhões que “doam” à caridade, quando esta pode ser publicitada e servir os seus interesses promocionais para comprarem a simpatia dos residentes e o apoio das autoridades.
É por estas e outras que as concessionárias — umas mais do que outras —, têm de entrar na linha. Doa a quem doer.
Quem permite que situações como as descritas, sem haver motivo para tal, aconteçam tem de ser punida. Por isso é tão importante mudar as leis laborais e introduzir alterações aos futuros contratos de concessão que acautelem estas situações.
Os deputados que na Assembleia Legislativa acompanham as questões laborais, e todos os outros que têm impedido a alteração da legislação, deviam cobrir-se de vergonha perante o que se viu e ouviu.
O Chefe do Executivo, o Secretário para a Economia e os serviços que lidam directamente com as concessionárias não lhes podem dar tréguas.
E o Governo da RAEM tem de assumir as suas responsabilidades perante esta desafortunada gente quando as concessionárias falhem, exercendo depois os seus direitos de regresso contra elas.
Não se pode tratar ninguém da forma que aqueles seres humanos têm sido tratados pelas referidas concessionárias e pela transportadora aérea. Se esta não pode levar os 150 de volta para o Vietname, as concessionárias que fretem um avião e repartam os custos, sendo depois compensadas pela Air Macau.
A RAEM tem a responsabilidade de assegurar que todas as pessoas que para aqui vêm trabalhar sejam tratadas com dignidade desde que chegam, enquanto cá estão, e até que regressem a suas casas e às suas famílias.
Nem os galgos foram tão mal tratados quando a Anima e o Albano Martins conseguiram colocar um ponto final nos “serviços” que esses animais prestavam à indústria do jogo.
É uma indignidade para todos nós, como residentes e como pessoas dotadas de sentimentos de solidariedade e amor ao próximo, assistir a reportagens como a que a TDM exibiu.
E dói ver pessoas sem meios, indefesas, que deram o seu melhor, serem tratadas como se fossem uns párias.
Não é, nunca foi, da tradição de Macau tratar mal as pessoas. Por mais miseráveis que fossem. Se não havia antes razão para isso, quando não havia a riqueza que hoje há e muita gente atravessou o Canal dos Patos para ficar rica, sendo-lhes emitidos documentos para aqui residirem e serem hoje patrões de TNR, agora há ainda menos razões.
Esteve bem, muito bem, o Chefe do Executivo na resposta que deu na Assembleia Legislativa ao deputado Mak Soi Kun.
É verdade que Ho Iat Seng disse o óbvio, mas isso, neste momento, não será de menos tendo em atenção o passado recente. Fez bem em dizer, sem rodeios e direito ao assunto, ao que vem.
Primeiro vieram os peões de brega, que aliás andam por aí há já alguns anos em seminários, conferências e quejandos, queixando-se da carga fiscal. Ficámos cheios de pena.
Como não desse o resultado esperado, veio então o senhor deputado, qual bandarilheiro de Semana Santa, que ainda há um mês dizia que “as empresas do sector do jogo, (...), ganham muito dinheiro todos os anos, mas precisam que alguém lhes fale para assumirem as suas responsabilidades sociais durante a ocorrência de grandes incidentes", e sem que se percebesse se de um acto de contrição se tratava ou se de uma falha de memória, fazer umas chicuelinas e gaoneras perante a afición casineira e a da própria AL.
Caiu mal. Muito mal.
Há muito que disse, e também o escrevi, e não foi hoje nem ontem, sobre o que pensava relativamente à responsabilidade social das concessionárias e o que importava vir a fazer no futuro em matéria de jogo.
Estou por isso inteiramente de acordo com o Chefe do Executivo quanto às preocupações que manifestou a esse nível, bem como no que concerne à manutenção do nível de tributação sobre os lucros decorrentes do exercício da sua actividade de exploração do jogo.
Se olharmos ao valor dos investimentos realizados, aos prazos de retorno e aos lucros gerados nos últimos quinze anos — não vale a pena perder tempo com o que está mais para trás —, isso basta para se perceber que aquilo que as operadoras do jogo receberam foi incomparavelmente superior ao que investiram. E se alguém tivesse falado num aumento da sua tributação daí também não viria escândalo.
Não serei eu a propô-lo, mas não deixarei de dizer que quem ganhou o que ganhou à custa do jogo, antes e depois da liberalização, deveria demarcar-se dos pedintes que em seu nome falam, seja para reduzirem a taxa do imposto especial ou solicitar "apoios" assim que estala a borrasca.
A RAEM não tem feito outra coisa, há um ror de décadas, que não seja apoiar a indústria do jogo. E todos os que vivem à volta dessa manjedoura, fechando os olhos ao que ia acontecendo à cidade e aos seus residentes. E até acomodando a lei "à prática" para distribuir mais uns sacos de rebuçados a quem não se qualificou para os receber.
Está na altura da indústria do jogo, salvo raras, honrosas e pontuais excepções, assumir as suas responsabilidades, perder a sobranceria, e dar a Macau o equivalente ao que tem sacado com pouco ou nenhum esforço.
Manter postos de trabalho numa altura de crise não é nenhum favor que as concessionárias estejam a fazer à RAEM ou à sua população quando o seu mercado está há décadas garantido.
E já que continua a haver quem não tenha vergonha para ver o óbvio antes de estender a mão para ir ao pote, foi bom que o Chefe do Executivo dissesse ao que vem, caso não tivessem ainda percebido.
O tempo dos corsários e do saque acabou. A responsabilidade social de quem mais beneficiou com o laxismo, a corrupção e a incapacidade para governar não pode continuar a vir de empurrão.
E quem não gostou do que ouviu, a começar pelos ganaderos locais, poderá sempre ir abrir casinos no Alasca. Ou na Líbia.
Certamente que não faltarão por lá os ursos e os camelos, nem os esquimós e os beduínos com que se habituaram a lidar para lhes encherem os elevadores, as escadas rolantes e os cofres, deixando as gorjetas para se pagarem campanhas eleitorais fora de portas.
O livro não é muito recente, mas só agora me chegou às mãos graças à generosidade de um amigo.
Histórias de espionagem e agentes secretos sempre constituíram um tema interessante, em especial quando relacionadas com situações políticas reais de que apenas se tomou conhecimento por curtas notícias da televisão ou dos jornais. Quando o tema se prestava, por vezes, dava origem a interessantes filmes/documentários para televisão ou cinema.
O que este livro tem de diferente, um pouco como nas memórias de Forsyth, é que todas as histórias são verdadeiras. Independentemente da perspectiva que nos dão do interminável conflito israelo-palestiniano, os operacionais, os heróis e os mortos existiram mesmo, e alguns dos primeiros ainda estão vivos para trazerem o passado até nós e acenderem algumas luzes que nos ajudam a compor o puzzle, completando memórias anteriores.
Longe da imagem de uma Mata Hari, Sylvia Rafael, de seu nome, ou Patrícia Roxenburg, a identidade que assumiu após chegar ao Canadá, foi uma das lendas da Mossad, participando em numerosas operações sob diversos disfarces.
Feita agente clandestina, dotada de uma vontade férrea, educada, culta, com a classe e o charme suficientes para despertar paixões, o seu nome sempre foi uma dor de cabeça para a Fatah, o Setembro Negro e em particular para Ali Hassan Salameh, o cérebro da Força 17, responsável pelos atentados de Munique, pelo desvio de aviões comerciais e um rasto de atentados e inocentes mortos ao longo de vários anos.
Depois do fiasco da operação Lillehammer, recuperaria a sua identidade, acabando por casar com o advogado que a defendeu no processo de Oslo, Annaeus Schjødt, e a acompanhou até ao fim dos seus dias.
Foi este quem, no dia do seu funeral no kibbutz onde Sylvia foi voluntária durante os seus primeiros anos em Israel, sugeriu a elaboração do livro a Moti Kfir. Doutorado em História pela Sorbonne, tendo dirigido a Escola de Operações Especiais da Mossad, Kfir foi o seu recrutador, e hoje empresta o seu know-how a uma empresa portuguesa, pelo que se um destes dias se cruzarem com ele não se admirem.
Enquanto o filme não chega, e outras versões não aparecerem ("No story ever truly ends, and no account of a person's life can be all-inclusive"), fiquemos com o documentário que entretanto se fez, e com o muito interessante livro de Kfir e do jornalista Ram Oren sobre a vida de Sylvia Rafael. O prefácio é do reformado Major-General Shlomo Gazit, ex-director dos serviços de inteligência militar e ex-presidente da Universidade de Ben Gurion.
A Assembleia Legislativa de Macau, depois de muita insistência, lá aprovou a lei que estabelece um salário mínimo para os trabalhadores residentes e não-residentes. Deixou de fora do seu âmbito de aplicação os trabalhadores domésticos e os deficientes.
A solução mereceu críticas da deputada Song Pek Kei. E certamente que também mereceria daqueles senhorios, estabelecimentos comerciais, hoteleiros e afins que aqui ao lado, na província de Cantão, denunciaram contratos de arrendamento, colocaram letreiros e impediram a entrada de quem pela cor da pele aparentasse origens africanas (partindo do princípio que os sul-africanos louros, de olho azul e descendentes dos boers são "europeus").
Como se, por exemplo, um deficiente devesse ter os mesmos direitos da deputada Song Pek Kei. Como se o deficiente que exerce funções de telefonista, exactamente iguais às do residente, não devesse receber muito menos. De serem pagos é uma sorte. Como se não fosse razoável, patriota e socialista, admitir a existência de seres humanos de primeira e de segunda. E até de terceira (é preciso ter esta categoria para acomodar aqui a deputada Agnes Lam que quer "estar no meio, porque, assim, o Governo" pode ouvi-la).
A questão das exclusões, para haver justiça e uma maior igualdade, deverá mesmo ser colocada em termos filosóficos, porque, na prática, teremos de começar a admitir que os residentes não-permanentes de Macau deviam ser equiparados a uma espécie de diabos disponíveis para exercerem funções de escravos. Alguns ainda estão, incompreensivelmente, em regime de semi-escravatura (têm horário de trabalho, embora por vezes possa não ser cumprido).
Um dos argumentos da tese da deputada Song Pek Kei é a de que com a aprovação da lei do salário mínimo ninguém quererá, daqui para a frente, ser trabalhador do serviço doméstico, sector onde aquela lei não se aplica.
O argumento é compreensível, porque segundo a deputada essa gente deixará a "indústria do serviço doméstico" para ir procurar outros empregos mais bem remunerados. Noutras indústrias, está-se a ver. Um escândalo.
Embora não se corra o risco de virem a ser dirigentes numa qualquer indústria de encher chouriços, a solução seria a de não se pagar o salário mínimo a ninguém que não seja residente permanente. A lei não deveria por isso ter sido aprovada.
O argumento da deputada é inteligente. Na verdade, como a própria esclareceu, uma solução mais "consistente e justa", que excluísse esses mandriões, teria sido preferível.
Dando de barato, mera hipótese, que há trabalhadores não-permanentes que exercem funções de serviço doméstico em casa de residentes com, por exemplo, qualificações para administradores de empresa, tradutores, assistentes sociais e enfermeiros, e que com esta lei vão denunciar os respectivos contratos de trabalho atrás dessa loucura do salário mínimo, estou a ver a aflição dos patrões só de imaginarem que vão ficar sem pessoal qualificado para lhes ir despejar o lixo, passear o cão, limpar os excrementos deste, buscar a sopa de fitas ou colocar moedas no parquímetro.
É pena, de facto, que à semelhança do que aconteceu com a exclusão dos portadores de títulos de trabalhadores não-residentes (TNR) quanto aos novos cartões de consumo de MOP 3.000 (três mil patacas), e que na segunda fase ascenderão a MOP5.000 (cinco mil), não se tenha também excluído todos os não-residentes permanentes do salário mínimo.
E que, ao invés, não se tivesse criado uma comissão da Associação Visão do Povo, a que a deputada preside, para discriminar com justiça e consistência os não-residentes e os portadores de títulos TNR. Os TNR, como todos sabem, é gente que se tivesse sido abrangida pelos cartões de consumo, com três ou cinco mil patacas, sem as poder trocar por dinheiro vivo, iria gastar essa fortuna em pacotes de arroz, em lojas de bolos e de desporto, ou a comprar latas de conservas e sapatos desportivos, desses que são feitos no Paquistão ou na Indonésia, e que se vendem nas lojas da Rua do Campo e da Areia Preta, não contribuindo para a estimulação do comércio local numa altura de crise.
Aliás, eu vou mais longe. A senhora deputada devia tomar a iniciativa de se articular com o Governo para propor na Assembleia Legislativa (pode pedir a um desses novos juristas não-residentes que assessora os deputados que a ajude a preparar o projecto) que a cada residente seja atribuída uma quota de não-residentes, incluindo TNR, trabalhadores do serviço doméstico e deficientes, para os poder atirar ali da Ponta da Cabrita quando não precisarem deles. Ao fim-de-semana. Poupava-se no bilhete de regresso, e em vez de irmos ao karaoke ou assistir a um concerto da Orquestra Chinesa de Macau, dedicávamo-nos a atirar não-residentes, deficientes (infelizmente também há alguns bilingues e de nacionalidade chinesa) e filipinos ao mar. Depois cobravam-se bilhetes aos turistas, já que isso contribuiria para um aumento da oferta turística e ajudaria à diversificação da economia local.
Faço votos de que a deputada Song Pek Kei seja nomeada pelo Chefe do Executivo como Alta Comissária para os Não-Residentes, Deficientes e TNR. Sem limitação de mandatos. A ver se com as suas qualificações jurídicas e políticas acabamos com eles o mais depressa possível. Em prol de uma sociedade mais asséptica, nacionalista e patriótica. A globalização já era.
1. Não obstante todas as recomendações dos serviços do Governo da RAEM, e os anúncios nas rádios e televisões, no sentido de permanecerem em vigor as medidas de distanciamento social, continuo a não perceber por que razão nos elevadores e nos autocarros essas medidas não são respeitadas. Nos edifícios de escritórios não se deixam fechar as portas dos elevadores enquanto a cabine não está cheia, o mesmo acontecendo em relação aos autocarros. Há sempre lugar para mais um, todos em cima uns dos outros. Ainda ontem vi veículos das carreiras 25 e 26, ao final da tarde, a abarrotarem de trabalhadores. Não há dia em que não circulem assim. Será que o vírus não se transmite dentro de autocarros e elevadores? Por que razão não se dão instruções aos motoristas para se limitar o número de acessos e, se necessário, no caso dos autocarros, não se obriga os concessionários a aumentarem a frequência nas carreiras mais concorridas?
2. Tomei boa nota da notícia da Rádio Macau sobre os lucros obtidos em Macau pela MTR com a operação do Metro Ligeiro. Registar proveitos de 262 milhões de dólares de Hong Kong, logo no primeiro ano, com a operação de um serviço que foi inaugurado em 12 de Dezmbro de 2019, funciona praticamente sem passageiros, e que tem sido um sugadouro de dinheiros públicos, é obra. Não admira que "com estes resultados, as operações de Macau em 2019 foram já das mais lucrativas entre as subsidiárias internacionais da MTR". Um verdadeiro negócio da China com a chancela do Governo da RAEM. A mim só me admira, depois de todas as vicissitudes, e com prejuízos tão grandes para Macau, como é que ainda há tanta gente à solta.
3. Tenho ouvido queixas de alguns pais relativamente ao escassos tempos lectivos ministrados aos alunos da Escola Portuguesa de Macau durante este período de crise e confinamento provocado pelo COVID-19, por comparação com o que se passa com outras entidades que ensinam em língua inglesa. Convenhamos que duas horas por dia não é nada para quem está em casa a acompanhar as aulas. Mas a crítica maior diz respeito ao facto de não ter havido uma suspensão ou redução proporcional do valor das propinas pagas, o que à primeira vista parece fazer todo o sentido. Bem sei que para um professor não é a mesma coisa dar aulas ao vivo e prepará-las para serem transmitidas por uma plataforma digital ou pela televisão. E que também haverá custos decorrentes das alterações. Mas essa talvez seja uma situação a ponderar. Ou aumentam os tempos lectivos ou cortam nas propinas. Como está é que não parece razoável dadas as dificuldades que algumas famílias atravessam e as que têm em reduzirem ainda mais os seus encargos.
(Museo Nazionale di Capodimonte, Napoli, Italia, The Flagellation of Christ, c.1607, Michelangelo Merisi da Caravaggio)
Não me recordo de quando o conheci porque me lembro dele desde que tenho memória de mim.
Quando nasci, ele ainda vivia em Gondola, onde era médico. Passara antes pelo Vale do Limpopo, que percorreu de lés a lés, com sol, chuva ou calor, qualquer que fosse o nível de humidade.
Filho de um empresário desafogado ligado à fundação e aos tempos de ouro do Hotel Avenida Palace, a sua família tinha raízes em Ovar. Ele já nasceu em Lisboa, em S. Jorge de Arroios, de onde voltaria a partir, ainda miúdo, para frequentar o Colégio dos Carvalhos.
Falou-me desses tempos duros por que passou, longe da família e comendo rancho quase diariamente, sem, no entanto, deixar de sublinhar a excelência da educação que lhe foi ministrada. Talvez tenha sido aí que adquiriu apreço pelo rigor, pela arrumação, pela organização, pelo cumprimento de horários. E também pela liberdade.
Ainda jovem, perdeu o pai a assistir a um jogo de futebol, no velho Estádio da Luz, para cuja construção também contribuíra, creio que pouco depois da sua inauguração. Contou-me que estavam a preparar-se para o início da partida, com a bola ao centro, quando de repente, a seu lado, o pai tombou inanimado, no momento em que se preparava para acender um charuto.
Mais tarde dir-me-ia que o seu destino ficara marcado por esse fatídico momento.
Acabaria por se licenciar pela Faculdade de Medicina de Lisboa, ainda no Campo de Santana. De vez em quando contava-me episódios curiosos desses tempos em que não havia computadores, faxes ou Internet e o céu de Lisboa seria mais azul.
Os primeiros anos de exercício da profissão seguir-se-iam no Curry Cabral, mas depois do seu envolvimento com a oposição democrática e com o MUD juvenil, e a assinatura das listas de apoio aos candidatos presidenciais que defendiam a mudança de regime, Norton de Matos e, mais tarde, Humberto Delgado, percebeu que profissionalmente ficara com as pernas cortadas nos Hospitais Civis. Uma chamada à António Maria Cardoso, porque, dizia ele, queriam perguntar-lhe o nome, e ficou despachado o seu futuro na Metrópole. Daí até Moçambique foi um pequeno salto.
Para lá partiu sem saber o que iria encontrar. A ele se juntariam, anos mais tarde, a mãe viúva e a única irmã. Desta última, de quem ouvi que seria mulher de grande classe e elegância, havia lá em casa uma belíssima natureza-morta. Quando chegou a Moçambique, a Maria Luísa, assim se chamava, tornou-se amiga da Mélita, minha Mãe, mas acabaria por morrer prematuramente com um cancro, pelo que não me lembro sequer de a ter conhecido.
Eu nasci em 1962, dando-se a circunstância de termos chegado ao mundo no mesmo dia de calendário. E como já conhecia a família toda, sempre com a paciência de a muitos cuidar das maleitas, tornar-se-ia no meu padrinho. No Padrinho, porque a partir daí, com excepção de alguns sobrinhos “emprestados”, como ele dizia, que por vezes o tratavam por tio, passou a ser o Padrinho. O meu e de todos os outros, incluindo os de circunstância.
As minhas primeiras memórias dele são, pois, de meados dos anos sessenta do século passado, na Beira, mas igualmente de Lourenço Marques, onde me recordo de termos estado, num tempo em que ele ainda passara por umas curtas experiências no karting, e de me terem levado a passear.
Como médico dos Caminhos de Ferro, primeiro de Moçambique, a seguir na Beira, onde se distinguiu pela forma como a todos tratava, dos mais pobres aos mais abonados, num múnus que exercia sem horário durante todas as horas do dia e sempre disponível, fosse para receber os queixosos na inconfundível Estação dos Caminhos de Ferro, ou visitar quem dele precisava, em casa ou na palhota, tinha tudo para vir a ser feliz longe da capital do império.
Ao lado da mulher que amava, e que o amou até à morte, com um grupo de amigos absolutamente único, com os quais se dedicava à leitura, ao cinema, ao ensaio e à crítica literária, onde primavam alguns colegas, amigos escritores e poetas, entre os quais recordo o Gouveia Lemos, o Craveirinha e o Rui Knopfli, chegou a colaborar, episodicamente, no suplemento literário de “A Tribuna”, que nos anos 60 marcou uma época na história da literatura portuguesa de raízes africanistas — e onde se terá dado a “abrilada moçambicana”, dizia ele —; e sei que ganhou um prémio num concurso de contos, com um texto belíssimo que acabaria por ver publicado numa colectânea.
Em 1968, com 48 anos, numa visita ao oftalmologista, diagnosticaram-lhe um problema de cataratas. Como na Beira não existissem meios adequados, nem especialistas aptos à realização de uma operação dessa natureza, tratou de marcar a intervenção para ser feita na África do Sul. Já em Lourenço Marques, quando tratava dos preparativos da viagem, um colega que aí exercia disse-lhe que era um disparate viajar para o país vizinho para realizar uma operação tão simples, porque ele próprio estava habituadíssimo a fazê-lo, e que podia operá-lo logo no dia seguinte, ali mesmo. Acreditando no que lhe era dito, confiando na competência do colega, que pensou ser como ele, cancelou a cirurgia que iria fazer a Joanesburgo e entregou-se às mãos que de uma assentada, e tão expeditamente quanto se revelou possível, o operaram aos dois olhos.
Passados alguns dias, quando lhe foi dada alta e o mandaram para casa, recordo-me de ter ido visitá-lo. Ainda estava com os olhos tapados e de óculos escuros. Na semana seguinte, ouvi dizerem que não havia evolução, porque embora o Padrinho conseguisse distinguir algumas cores nas molas da roupa, estava progressivamente a ver tudo acinzentado.
O que se seguiu foi um longo e doloroso calvário.
Perdeu progressivamente o pouco que ainda via, e as sombras tornaram-se cada vez mais escuras, até serem breu. Em Setembro desse ano foi de novo operado, já em Lisboa, no Hospital da Cruz Vermelha, ficando instalado num quarto paredes-meias com “o Botas”, que caíra da cadeira na mesma ocasião. Visitei-o ali, no dia em que ambos fazíamos anos. E creio que terá sido essa a primeira vez em que senti de facto a tristeza.
Nos anos seguintes, não tendo havido sucesso na intervenção realizada em Lisboa, o Padrinho foi então à África do Sul, a que se seguiu uma visita a Barcelona, onde o primeiro e o mais famoso dos Barraquer lhe disse que o problema só se resolveria com um enxerto das córneas, mas que ele nunca o tinha feito e que se ele quisesse ser operado seria como uma lotaria. Se corresse bem, o Padrinho recuperaria a visão e ficariam ambos famosos. Ganhariam o El Gordo. Se corresse mal, ele regressaria a Lisboa e nas Ramblas a vida seguiria igual.
Perante o que lhe foi dito, sem querer voltar a confiar na sorte que há tanto lhe fugia, rumou a Inglaterra onde, com o apoio da Maria Isabel, seria operado no Queen Elizabeth pelo que era ao tempo o oftalmologista da Casa Real. Tinha tudo para correr bem, voltou a correr mal.
Em Londres retiraram-lhe uns drenos minúsculos que o sapateiro encartado que o operara em Lourenço Marques, e que depois veio exercer para Lisboa, deixara lá ficar, e que até aí ninguém incrivelmente vira. O talhante esquecera-se de os remover quando lhe tirou os pontos. E aqueles deram-lhe cabo dos olhos durante três ou quatro anos. Quando analisaram o fio que tinha sido utilizado para o suturarem na primeira intervenção, disseram-lhe que naquela altura, em Londres, aquele tipo e espessura de linha só servia para “coser barrigas”.
Em tratamento ambulatório permanente, a etapa que se seguiu levá-lo-ia a Lyon, ao Prof. Charleur. Cirurgia no dia do levantamento das Caldas, em 1974, e fizeram-lhe dois enxertos nas córneas. Ainda em convalescença, na clínica onde ficou durante alguns dias, disseram-lhe de uma tentativa de golpe em Portugal, coisa em que também já pouco acreditava.
A operação correu bem e duas semanas depois estava de regresso a Lisboa.
Não obstante as circunstâncias em que era obrigado a deslocar-se ao exterior, nunca deixava de me trazer qualquer coisa. De Londres viera uma réplica da Apolo 11, a pilhas, que levantava e pousava, fazendo as minhas delícias. De Lyon chegaram as minhas primeiras chuteiras “com pitões”. Da Adidas. Um luxo nesses tempos. E com as chuteiras veio também a recomendação de que não poderia constipar-se. E, mais importante, não podia espirrar. O regresso ficaria marcado para meados de Abril para lhe retirarem os pontos.
O golpe de 25 de Abril obrigou ao adiamento da deslocação, que acabaria por só ter lugar em Maio. E também me recordo de acordar nesse dia da revolução e de me dizerem que não poderia ir à escola, o que para mim seria uma grande chatice. O Padrinho passou o dia com os ouvidos colados ao rádio-móvel da Schaub-Lorenz. Nesse dia não me deixaram fazer o percurso entre a Augusto Gil e a Avenida de Madrid.
Quando o Padrinho voltou a Lyon já era demasiado tarde. Pelo caminho constipara-se, espirrou repetidas vezes, os pontos rebentaram. Mais um desastre que ofuscou a sua alegria, momentânea, pelo 25 de Abril.
Em Lisboa, primeiro, em especial com o Prof. Ferraz de Oliveira, a quem muito estimava e que ainda conhecera em Moçambique, do tempo em que aquele por lá passou para cumprir o serviço militar, e muito anos volvidos, talvez uns vinte, em Coimbra, outros tentaram fazer os impossíveis para lhe restituírem a visão. Sem sucesso.
Ano após ano percorreu as calçadas que lhe estavam reservadas, recusando-se a aceitar o seu destino, rejeitando bengalas e processos de aprendizagem próprios de quem está na sua condição, com excepção do braile, de que ainda chegou a fazer uso para “ler” algumas obras, como Kundera, que já não era do seu tempo saudável e de quem ouvira falar.
Ao longo da minha vida, mesmo depois de me tornar adulto, em virtude da estupenda memória que tinha, deu-me a conhecer inúmeros livros. Era senhor de uma fantástica biblioteca que aos poucos me foi passando. Ao meu irmão, que foi para Santa Maria, cabiam os livros de medicina.
À medida que eu crescia e evoluía, por vezes em razão das descobertas que fazia e das interrogações que suscitava depois de passar umas horas na Livraria Barata, onde chegou a haver um banquinho colocado pelo dono para que eu, e outros curiosos como eu pudessem ler sem estorvar ninguém, recordava-me o que havia na biblioteca lá de casa, a que se seguia, invariavelmente, um “depois leva esses livros, eles hão-de ser todos para a ti, a mim já não me servem para nada e o C.J. não precisa deles”.
Foi assim que recebi algumas primeiras edições do Eça e do Pessoa, Fernando como ele, como S. António, por quem tinha alguma admiração, já que a devoção nunca fora o seu forte e há muito a perdera perante a cruz que carregava.
Com o Padrinho cheguei a Rimbaud, Stendhal, Hugo, Schopenhauer, Kierkegaard, Rousseau, Proust, Maupassant, Gide, Camus, Sartre, Beauvoir; aos brasileiros, também a Unamuno, Lorca, Machado; ao Sena, à Sophia, a Brecht, ao Santareno, ao Gomes Ferreira, sei lá, a uma infinidade de gente que sabia sentir, escrever e pensar, e que nos ajudava a pensar, e a olhar para o mundo e para nós, os mortais, com olhos de ver, da literatura à pintura, da música à canção francesa e italiana, e do jazz até à "senhora D. Amália", que eu jamais conheceria e apreciaria sem a sua ajuda.
Os últimos anos, com os sucessivos impasses e os desastres político-governativos em que o país se foi imolando, e que lhe cortaram a pequena reforma, aumentou a sua descrença em relação aos políticos e aos partidos que nos saíram na rifa. "Gente medíocre, gente que não presta, e os que prestam não querem saber de nós".
Contudo, queria sempre saber o que eu andava a fazer, a ler ou a investigar, e a que conclusões chegava, sem que jamais o ouvisse criticar as minhas áreas de estudo, ou, em dado momento, a minha esporádica intervenção política enquadrada, acompanhando-a mesmo com algum interesse.
Uma das últimas vezes em que o recordo bem disposto foi no dia do meu casamento. Disse-me várias vezes o quanto gostava da minha mulher. E num dos últimos Natais em minha casa, quando ainda vivia em Portugal, guloso com a canja de perdiz e o bacalhau espiritual ou elogiando a macieza do cabrito assado, logo ele que detestava "carne da testa", voltou a elogiar-lhe os dotes e a paciência.
A distância e as dificuldades da vida roubaram-nos infindáveis horas de conversa, que sempre o distraíam, por vezes de leitura em voz alta, fossem artigos de jornal ou trechos de livros que eu lera e apreciara, e depois levava para lhe ler quando passava lá por casa.
Lembro-me de todas as suas interrogações quando numa tarde lhe li umas quantas passagens de um ensaio da Maria Filomena Mónica sobre a morte. E dos comentários que fez sobre trechos das memórias do Almeida Santos, que propositadamente levei para ouvir os seus comentários, de um tempo colonial em que ambos, tal como o meu Pai, foram participantes. Limitou-se a dizer-me que ele sabia escrever com propriedade. E de como apreciou o “Cão como Nós”, e outros escritos do Alegre, de quem não gostava como político, e que "se fosse tão bom político como escritor talvez nos safássemos". A esquerda, a política, há muito que morrera para ele.
Acompanhava os relatos de futebol, gostava de ouvir as notícias da Renascença e a Bola Branca (seria este o nome do programa?), e tinha tanta confiança nos últimos presidentes do Benfica que ao fim de mais de sete décadas de associado desistiu de ser sócio. O que me ele disse, cego, por exemplo, de Vale e Azevedo ou de Vieira, só de os ouvir arengar, é irreproduzível. Apesar disso, quando soube que eu iria participar, com muitos milhares mais, no financiamento do novo Estádio, perguntou-me se não queria uma pequena ajuda. Quando a SAD se formou, como quem não quer a coisa, perguntou-se se estava a pensar comprar algumas acções. Dizendo-lhe que sim, entendeu reforçar o parco pecúlio que eu destinara para esse efeito e esclareceu logo que as acções ficariam em meu nome. Assim se fez.
Dizia-me que estava velho. E com a amargura e a rudeza de quem sente a aproximação ao fim, acrescentava que só não queria que o lixassem mais. Na reforma. Eu compreendia-o e não dizia nada. Sabia que tinha carradas de razão.
Numa das últimas cartas que me enviou, quando a Mélita ainda podia escrever o que ele ditava, lembrou-se de me falar do poema “Amputação”, que o Rui Knopfli lhe dedicou (Algo, em mim, está morto./ O lado direito inerte, ausente,/ de mim está alheio./ Do lado esquerdo o fito,/como se a um outro/ olhasse./ Metade de mim persiste,/ vive,/ e contempla algo, ardendo,/ estiolando,/ que em mim está morto./ Um perfil que apodrece/ e eu vivendo/ e vendo ausentar-se de mim/ algo que em mim está morto/ definitivamente.) na edição do seu primeiro livro, referindo-me que ao fim destes anos todos aquele texto fora premonitório.
Escreveu-me então que “do texto, em si, já não me recordo, mas o título ficou como um sinal de presságio. Não sei se ele tinha os olhos perfurantes e longos dos videntes”. Tinha sim.
E a propósito do que por aí ia, e ainda vou, escrevendo, aqui e ali, e do que alguém lhe lia quando por lá passava, com a sua sabedoria e a infinita amizade que sempre nos uniu, transmitiu-me que já uma vez me tinha mandado dizer, “de forma arredondada”, aquilo que pensava. E acrescentou algo que jamais esquecerei:
“Tenho para mim que não é quixotismo denunciar toda e qualquer forma de injustiça, mas é minha convicção também que os valores e interesses instalados, seja qual for o poder que os suporte, são como moinhos de vento, contra os quais quase sempre é inútil arremeter.
De quanto me foi possível deduzir, as barricadas parisienses de Maio de 68 foram erguidas contra alguns desses interesses e valores — só que o foram pelas mãos de um revolucionarismo inconsequente —, por romântico, por demagógico e por outras razões mais que eu não sei.
Passadas três décadas, os “moinhos” lá continuam no seu afã e, varridas as ruas do entulho revolucionário, já nada deve restar nos vazadouros municipais.
A velha máxima latina “primum vivere deinde philosophare” podia servir de epitáfio (ideia minha) para certos acontecimentos e situações.
Sem dúvida, viver está sempre primeiro!
Longe de mim, com estas palavras, pretender desviar-te do que sintas como imperativo.
Penso que conheces minimamente o chão que pisas e o meio que te rodeia.
Assim sendo, “sem te queimares” aproveita o teu “Sol de Primavera”, porquanto, como tantas outras coisas nesta vida, também "o sonho é fugidio”.
Pegando nesse “sem te queimares” veio-me à lembrança o diálogo havido nas vésperas de Alcácer, entre D. Sebastião e um velho fidalgo que desaprovava a sua empresa africana.
Ao reticente conselheiro terá o Rei perguntado qual era a cor do medo. A resposta terá sido mais ou menos esta: “Senhor, o medo, por vezes, tem a cor da prudência”.
No final da missiva recordava-me que não queria que eu fosse medroso. Ele, que nem sempre o fora, não podia vangloriar-se de o não ter sido porque pagara sempre um alto preço pelos seus erros maiores.
Quando o Rui faleceu, em 2017, em termos tão súbitos, incompreensíveis e por erros sucessivos de outros colegas, acompanhou-me na dor, no desnorte, preocupado com o que eu iria fazer a seguir. E como concluiria o doutoramento.
O falecimento da Mélita foi a machadada que faltava no seu desgosto. Sempre pensara que por ser mais velho iria primeiro. Não quiseram assim os deuses. Voltaram a lixá-lo.
Repetia na sua solidão, implorava até à exaustão, da sua lucidez cansada e desesperada, que o levassem, que não estava cá a fazer nada. Que já chegava, temendo que a longevidade do seu lado materno o fizesse continuar por mais tempo no martírio em que vivia, na escuridão permanente entre chagas e trambolhões, enquanto o corpo mirrava e dobrado se ia vergando ao peso de mais de um século, recriminando quem com carinho e ternura, embora houvesse sempre quem com pouco jeito, o procurava auxiliar no seu infortúnio.
A mim escutou-me sempre. E chegou a pedir-me desculpa pelo que dissera a um ou outro, gente de quem ele sempre gostara e que dele gostava, como se fosse o facto de ser eu a referi-lo, quando com ele falava no desagradável episódio ocorrido, que desse autenticidade ao sucedido e o fizesse descer à terra.
Um dia, já em democracia, quando um alto dirigente africano conhecedor da sua vida, como outros que o conheciam e por vezes apareciam, fez questão de o visitar, e de nos acompanhar numa refeição em sua casa, estando já ele cego há muitos anos, aquele referiu-lhe, não obstante toda a hospitalidade, amizade e confiança, que aqueles aposentos eram “curtos” para acomodar toda a gente. Não éramos mais que seis ou sete pessoas à volta da mesa, mas aquilo caiu mal, e dessa vez a resposta saiu sem diplomacias, certeira e fulminante: “Pois são, tem razão, mas sabe que este colono só trouxe de África a roupa e os livros, e nem a cama onde se deita foi por ele comprada”. Fez-se silêncio. A seguir voltou tudo à normalidade, e jantou-se como sempre.
Preocupava-se, preocupou-se sempre, com a felicidade dos outros. Que os queria felizes, que tinham esse direito, sem jamais perceber a razão da sua própria infelicidade, do seu purgatório, da solidão e do abandono em que Deus, de cuja existência cada vez mais duvidava, o deixara. Nem Santo António o escutava.
Estou seguro que a sua infelicidade se foi tornando maior à medida que sentia o tempo fechar-se à sua volta, sem solução, e que alguns dos que lhe eram mais próximos o foram vendo afastar-se cada vez mais amargurado, rude e agreste no trato.
Pediu que no dia em que morresse o levassem para o Alto de S. João. Se possível que fosse tocada a sinfonia do destino, como que me recordando as infindáveis tardes e noites em que ouvíamos os discos que eu descobria e de que ele gostava. Podia ser Brel, um Requiem ou a Maria João Pires. E queria que o seu diploma o acompanhasse na hora da despedida. A medicina fora a sua paixão maior e a causa da sua tragédia e do seu desencanto. Deixara-o naquele estado amputado, sem poder ler como uma pessoa normal. Não servira para nada, não obstante o brilhantismo da forma como todos os colegas se referiam ao seu saber e ao modo como sempre exerceu a profissão, se dedicou aos seus doentes e transmitiu os seus valores a quem seguiu os seus passos.
A parte do diploma eu não disse a ninguém. Ficam a sabê-lo agora. Guardei-a para mim. Como guardei muitas outras coisas que me disse e que morrerão comigo. O juramento de Hipócrates era para ele mais sagrado que o Santo Sudário. E levara-o a interrogar-se, como médico, muitas vezes, sobre a justeza da consagração legal da eutanásia. Apesar de estar na situação em que estava. Nunca o esquecerei.
Longe, com as fronteiras fechadas, sem aviões, confinado à vista da minha varanda, nesta húmida, inquietante e recortada solidão em que também sobrevivo, deram-me a notícia de que finalmente lhe fora feita a vontade. Do outro lado da linha, disseram-me que o seu sofrimento terminara. Que não fora por causa de nenhum vírus, e que o tinham levado na Quinta-feira de Paixão. A sua via sacra de 101 longos e sofridos anos terminava ali. Solitariamente.
Foi cremado no dia seguinte, Sexta-feira Santa. Não houve velório, não houve missa. Ele não gostava de foguetórios. Só duas ou três pessoas que dele cuidaram até ao fim o acompanharam nessa viagem. Ouviu-se Beethoven.
E sabe-se que não ressuscitará ao terceiro dia. Dizem que isso está reservado ao filho de Deus. Não ao Padrinho.
Por isso resolvi escrever estas linhas. Eles que me desculpem.
(Créditos: João Relvas, LUSA)
Ouvi esta manhã, com a atenção que lhe é devida, e esquecendo aquela "achega" final da jornalista, a entrevista que o general Ramalho Eanes concedeu à RTP.
Num registo franco, directo e com a ponderação habitual, Eanes mostra que continua, aos 85 anos, a destilar humanismo e sentido cívico por todos os poros.
É bom escutar nesta altura o que o nosso antigo Presidente da República tem para nos dizer.
No tom adequado, com a calma e a reserva conhecidas, sem o espalhafato e a pesporrência de outros, com equilíbrio e o lastro da sua experiência, mostrou como é possível atravessar uma revolução, todas as suas peripécias, e percorrer mais de quatro décadas de democracia, recheadas de altos e baixos – que foram muitos, longos e nalguns casos também epidémicos –, mantendo a mesma honradez, a mesma dignidade e o sentido de Estado, independentemente das escolhas e opções que fez ao longo da vida.
E não é preciso concordar com tudo o que ele disse para reconhecer o serviço que uma vez mais prestou à nação.
Um senhor que continua a ser um exemplo de elevação, seriedade e dedicação à causa pública.