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aniversário

por Sérgio de Almeida Correia, em 20.12.19

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HÁ VINTE ANOS EM TRABALHO DE PARTO

Quando há vinte anos se cumpriu o (desde sempre) irreversível destino da reunificação de Macau com a velha China, todos os residentes permanentes da RAEM estavam cientes de que seria apenas uma questão de tempo até que o sentido das coisas começasse a mudar.

A transformação social, cultural e política que estava associada à mudança de governo, e as dificuldades da transição, por vezes em questões tão básicas como a localização de quadros e a continuidade do português nas instituições oficiais, isso mesmo indiciavam.

Porém, mais do que a acordada e prometida permanência dos instrumentos jurídicos negociados entre Portugal e a China, e as garantias dadas por esta quanto à continuidade da nova Região Administrativa, com um “elevado grau de autonomia”, importava dar tempo ao tempo para se ver como a vida da comunidade dos que já cá estavam se iria processar, e a afirmação da nova RAE na grande nação chinesa aconteceria.

Volvidos estes anos, é de justiça afirmar-se que a RAEM cresceu, desenvolveu-se, enriqueceu, o que já não é pouco tendo em atenção os tempos conturbados que vivemos, em especial desde o dia 11 de Setembro de 2001. Dia em que a liberdade e a segurança de todos nós, onde quer que estejamos, mudou.

Quem aqui vivia por cá continuou. Outros que haviam partido regressaram. E chegou gente nova, gente sem história, sem passado, sem verbo e sem distância. Gente desenraizada; uns vindos do interior da China, outros da Europa, dos EUA, da Austrália, e mais alguns montanheses que ainda estamos todos para descobrir de onde é que vieram, e que também por aqui se instalaram beneficiando da hospitalidade local e da indiferença de quem nos governava, comportando-se como se fossem os donos disto tudo, olhando com desdém e indiferença para quem cá estava e, mal ou bem, falava cantonense, patuá, português, inglês ou uma qualquer língua de trapos.

Ao contrário do que aconteceu em Hong Kong, apesar de integrada na RPC com mais de dois anos de antecipação em relação a Macau, a população daqui não cresceu 10% em vinte anos. Foram mais de 50% os que para aqui se predispuseram a vir acampar, dividir apartamentos, repartir camas, beliches e esteiras, mesmo com as perseguições ao AirBnb e à Uber, o que sendo suficiente para criar fortes desequilíbrios sociais, alimentar tensões e, aos poucos, desidentificar e fomentar a descaracterização da região, não deixou de ser, pelo que tenho ouvido, mais um grandioso sucesso do princípio “um país, dois sistemas”.

Cientes da importância das mudanças, e nalguns casos também da sua necessidade, tal o atraso em que nos deixou a defunta administração colonial militar, que até ao fim, não obstante a sua incontornável cegueira e propensão para o esbulho, recebeu as contemporizadoras bênçãos de Soares, de Sampaio e daquele sujeito que em 2006 viria a ascender à Presidência de Portugal, os residentes de todas as etnias e credos ergueram bem alta a bandeira da esperança e aguardaram o devir dos tempos.

Ao impulso dado pela pragmática e arrojada visão do primeiro Chefe do Executivo, ao tempo apoiado por uma Assembleia Legislativa que, dirigida por Susana Chou, não descurava a sua função fiscalizadora, apesar do desequilibrado sistema de checks and balanceslegado pela Lei Básica, e onde em cada dia que passava mais se afirmava o peso de Edmund Ho, sucedeu-lhe alguém com feitio para a procrastinação e cuja ambição estratégica o mais que lhe permitiu, ao longo de uma década, foi forjar uma proposta de lei visando proteger e desresponsabilizar, política e criminalmente, uma clique de titulares de cargos políticos, dos desmandos cometidos e dos que viessem a ser cometidos à sombra do novo maná, o que durante uns dias, em 2014, acabou com o tradicional quietude trazendo para as ruas dezenas de milhares de pessoas.  

Tirando isso, e a contribuição dada pelo erário público para o desmedido enriquecimento de uma meia-dúzia de famílias e respectivos compinchas, alguns, entretanto presos, outros ainda a monte; e de mais uns quantos ainda à espera que se lembrem de lhes pedir contas sobre a obra legada, pouco ficará que seja digno de nota. Talvez, com excepção das declaradas caducidades de algumas concessões e daqueles milhões de metros cúbicos de águas residuais que há décadas cavalgavam intrépidos, a céu aberto, para o estuário do Rio das Pérolas. Se com milhões se aumenta o caudal, com outros milhões se fazem as alegrias de todos.

E estes, os milhões, são a parte feita da história, a que não se recuperará nunca, já que aos milhões dos superavits se juntam os milhões da Viva Macau, da Nova Era, do Centro de Ciência, das obras do Museu do Grande Prémio, do solavancos do Festival de Cinema, com passadeira vermelha, evidentemente, para que os novos bimbos que chegam de smoking pela nova ponte do delta possam limpar as sapatilhas. Sem esquecer o novíssimo Hospital das Ilhas, há uma década um símbolo do progresso da terra e da excelência da sua medicina pública, bem como o metro ligeiro, as múltiplas barreiras arquitectónicas, reproduzidas como cogumelos em benefício de quem as fornece, as câmaras e os circuitos de CCTV dos novos pastores, os 13 em final de concessão, enfim, dos “Aos”, dos “Hos”, dos conselheiros cegos, surdos, mudos e carregados de fichas de jogo que ao longo de mais de uma década enxamearam múltiplos conselhos.

Não foi por em Macau se ter saído à rua a pedir o sufrágio universal e a prestação de contas dos governantes que a inflação cresceu, que os preços nos supermercados se tornaram escandalosos em termos internacionais, que doenças quase extintas reapareceram, que as praias estiveram encerradas por causa da cólera, que os ratos se reproduziram, que surgiu legionella em hotelaria de luxo, que os bandoleiros dos táxis prosperaram impunes, que entraram hordas pelas Portas do Cerco, para que uns deambulassem pela Ilha Verde e outros subissem a escadaria de São Paulo, até aportarem aos lupanares instalados nos hotéis da família.

Não foi por em Macau se ter exigido mais transparência nos negócios públicos que se deixou de adjudicar sem concurso, e mal, enquanto uns expatriados acomodados fechavam os olhos à marosca até quando havia concurso. Sim, que a reforma está a caminho e é uma chatice voltar ao ramerrão da pátria. Eles que se desidentifiquem sozinhos. O Estado existe para nos proteger das ameaças externas e internas. A RAEM serve para nos pagar e nos encaixotar, mais aos princípios, aos livros e aos códigos.

É claro que haver hoje quem clame por mais democracia – a pouca que existe, do alargamento do sufrágio à eleição directa de deputados foi legada pelos tímidos colonialistas, também convém recordá-lo nesta hora – é uma desgraça. Pedi-lo uma heresia de lesa-pátria. Uma hipocrisia, diz Sua Excelência, e diz muito bem (vénia, a sua bênção senhor ministro), como se os que antes de 1999 pediram o sufrágio universal para escolherem o Chefe do Executivo e os deputados da AL ficassem inibidos, após 1999, de continuarem a exigi-lo.

Como se isso fosse incoerente, e fosse aceitável, por exemplo, um filho, com capacidade para se sustentar e à família, querer casar-se e o pai autoritariamente dizer-lhe “está bem, mas eu é que vou escolher três raparigas para tu depois escolheres uma delas para casar”. Isto foi proposto do outro lado e há quem acredite ter sido uma proposta razoável.

É claro que um homem decente, um “kota” para os do quimbundo, teria de recusar tão indecente proposta e continuar a clamar pelo seu direito a escolher livremente a noiva, nem que fosse uma gaja qualquer para depois ter de ficar a viver com ela num anexo existente no jardim da casa da família.

Vinte anos passaram num ápice. Mais depressa com a ajuda dos fogareiros e das tinas cheias de água e creolina ordinária que para cá mandaram para nos purificarem da herança colonial sob o olhar atento dos novos capatazes, alguns bilingues até ao tutano, outros trilingues, porque também há os que sempre falam de cócoras para não incomodarem, e usando casaca de duas cores nas ocasiões solenes, verde por fora vermelha por dentro, e vice-versa, dependendo do convidado. Que dá sempre jeito na hora da refeição, quando fecharem as estradas, e chegar a hora da distribuição do saco de ossos aos fiéis, um tipo estar apresentável. E bem cheiroso, não vá a cerimónia ser perturbada pelo cheiro que se eleva de uma ETAR vizinha a transbordar.

As próximas décadas passarão ainda mais depressa. Posso garantir-vos. E com toda a segurança. Em especial na forma como nos aproximaremos do primeiro sistema.

Temos todos o dever de nos empenharmos na realização das encomendas para que nos escalarem, naturalmente que com a compreensão do ministro portuense, pois de outro modo seria hipócrita; a começar pela tarefa de apoio ao reforço da segurança interna, incentivando a que esse desagradável fardo da realização da justiça, da resolução de litígios, seja retirado aos tribunais e entregue a árbitros e mediadores, todos devidamente encartados e generosamente remunerados. Para arbitrarem com segurança. Para que a gente segura se sinta no futuro ainda mais segura na hora de se colocar na fila para receber o subsídio da fundação da praxe.

O que vale é que o tempo voa. Ainda bem. E se patrioticamente daqui assoprarmos ainda será mais rápido o caminho. E seguro.

Não há nada como ter a garantia de que depois de mortos poderemos ir todos arranjadinhos, com um fato de treino preto, daqueles da Versace, cheio de leões e ursinhos dourados, cravejado de lantejoulas, caveiras horrorosas e diamantes certificados na RAEM, levando connosco uma bolsinha L.V., um telemóvel da Huawei, um terço e um livrinho vermelho para afastar os diabos, uma carrada de latas de leite em pó para vender lá em cima e, claro, um ábaco.

Sim, um ábaco, porque dá sempre jeito para que nos sintamos todos seguros, e agradecidos, na hora da cremação, quando começarmos a prestar contas pelos chouriços que andámos a comer, e pelos arraiais que frequentámos, antes e durante o período de transição.

Agora alegrem-se, gentes. E celebrem. Cada um com o seu copo de maotai. Só faltam vinte e nove anos. Se isto continuar a ser um sucesso ninguém dará pelos anos que faltam. Nem pelos turistas. É preciso continuar o trabalho de parto. Crescer é glorioso, ricos já somos.

A nova Longa Marcha ainda está a começar. O paraíso é já ali.

E nós, residentes, felizes, seguros e todos identificados. Demos graças a Deus.

 

(texto publicado no suplemento da edição de 20/12/2019 do Ponto Final)

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