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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Depois da decisão de ontem do High Court de Hong Kong, colocando preto no branco que a legislação anti-máscaras (Prohibition on Face Covering Regulation – PFCR) do Governo de Hong Kong, dirigido por Carrie Lam, ofende a Lei Básica de Hong Kong, sendo por isso inconstitucional, o que gerou a ira do porta-voz de Pequim e dos habituais patriotas de conveniência, mas obrigou a Polícia de HK a suspender de imediato a sua aplicação, a expectativa é grande quanto ao que se seguirá. Isto é, se finalmente haverá bom senso, ou se o Governo de HK preferirá continuar a enterrar-se no atoleiro que a irresponsabilidade política criou com o apoio vindo de cima.
Zang Tiewei, porta-voz da Comissão dos Assuntos Legislativos do Comité Permanente do Congresso Popular Nacional, apressou-se a vir dizer, segundo um despacho da Agência Xinhua, que só a Assembleia Nacional, em Pequim, pode declarar se as leis de Hong Kong estão de acordo com a Lei Básica.
No entanto, Andrew Li, o tradicionalmente circunspecto ex-Chief Justice de Hong Kong, numa rara tomada de posição pública, veio recordar que a declaração vinda de Pequim "sugere que os tribunais de Hong Kong não têm poder para considerar inválida a legislação local com fundamento na sua desconformidade com a lei Básica", "mas se isto for o que quer dizer, é surpreendente e alarmante", "pois desde 1997 que os nossos tribunais consideraram ter este poder, ao mesmo tempo aceitando plenamente que qualquer interpretação do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional seria vinculante para Hong Kong, não tendo o Comité Permanente, nem em 1999 nem depois, sugerido outra coisa".
O resultado do que irá agora suceder é incerto, embora seja bastante claro o valor dos prejuízos e o número de pessoas detidas e feridas ao abrigo dessa lei, bem como a estatística do arsenal policial usado para catapultar a violência indiscriminada para as ruas e impor uma lei agora declarada inconstitucional.
Embora se ouçam vozes, e são cada vez mais, contra o uso indiscriminado da violência, quer por parte de manifestantes radicais, quer por parte das forças policiais, continua a haver a tendência entre os avençados da praxe, em Macau e Hong Kong, de responsabilizarem apenas um dos lados pela violência, destruição e disrupções provocadas no quotidiano da grande metrópole.
Qualquer pessoa de bom senso já viu que a violência vem dos dois lados, pelo que não é de estranhar que o editorial desta manhã do insuspeito South China Morning Post (SCMP) venha uma vez mais demonstrar que a solução para a crise só pode ser política e implica cedências de parte a parte.
Se o Governo Central quiser continuar a ter em Hong Kong o princípio "um país, dois sistemas", e se é do seu interesse governar, mantendo a lei e a ordem e respeitando o rule of law, o veredicto, reversível, é certo, agora proferido não poderá deixar de ser lido olhando para os resultados dos últimos inquéritos de opinião de que o SCMP dá conta:
"Law and order is essential, but being humanitarian is just as important if the unrest is to be brought to a peaceful end. Police yesterday maintained they would not stand by in the face of violence.
There are those who think police have been thrust into what is essentially a political tussle between the government and protesters. But, as more questionable enforcement actions emerge, police are seen by some as a contributing factor to the deadlock. Up to 73 per cent of respondents said police were responsible for the escalating violence of radicals, and 80 per cent supported an independent inquiry into officers’ actions."
Para aqueles que por aqui se arvoram em arautos dos incómodos da população, aqui está a resposta no editorial do principal, e de longe o mais influente, jornal de Hong Kong.
Resta saber se os "patriotas" de Macau vão entender alguma coisa do que se está a passar ali ao lado, ou se vão continuar, como há dias fez o deputado Si Ka Lon, na Assembleia Legislativa, a pedir mais "educação para cultivar o amor à Pátria e a Macau".
No mesmo dia em que o High Court da região vizinha, sem vacilar, se pronunciou sobre a inconstitucionalidade da "lei anti-máscaras" do governo de Hong Kong, numa reafirmação clara do princípio da separação de poderes, do rule of law e da autonomia da Região, foi finalmente lançado publicamente o livro "Lições de Procedimento Legislativo no Direito Parlamentar de Macau", a última obra de Paulo Cardinal.
O espaço foi a Livraria Portuguesa, tendo o Ricardo Pinto feito as honras. A comunicação social não faltou. Gostei de ver a casa cheia. Gostei de ver o autor, insigne jurista e académico que durante mais de duas décadas deu o seu contributo ao direito de Macau, em especial quanto à sua produção legislativa, acarinhado por actuais e antigos colegas, amigos, também alguns magistrados; por gente que não se distingue pela língua, pela classe social, pela etnia ou pela nacionalidade, mas que tem em comum o amor a Macau e ao Estado de direito, o apego à defesa dos valores que enformam o princípio "um país, dois sistemas" e o reconhecimento pelo trabalho dedicado e sério em prol do progresso, em defesa do que distingue a civilização da barbárie, e do verdadeiro engrandecimento das gentes da terra.
A apresentação, informada e competente, foi do Pedro Sena, outro ilustre jurista que deu o seu melhor a Macau durante vinte cinco anos, que dentro de dias partirá para outros voos e a quem desejo os maiores sucessos na sua próxima jornada.
Quanto ao livro, convém lê-lo para se aprender alguma coisa, lamentando-se apenas que tenha sido necessário fazer uma edição de autor para que aquele chegasse ao grande público.
Nestas alturas, e também quando se trata de prestar uma singela homenagem a outros que dentro e fora dos tribunais muito deram a Macau e ao seu direito e que na hora da despedida são ignorados, é que se vê o empenho desse mecenato do direito de Macau e das arbitragens que para aí anda a cortar fitas de flor ao peito. A sua verdadeira especialidade.
Quando se tratou de publicar uma obra essencial, a única até hoje produzida sobre o processo de produção legislativa em Macau, fundamental para se compreender a forma como se articulam na RAEM o poder executivo e o legislativo e o papel desempenhado pela Assembleia Legislativa no sistema actual, desapareceram todos. Eles e os patrocínios. O seu nome jamais ficará gravado nas colunas do templo.
Gente sem visão, interesseira, com pouca vergonha e muito dinheiro, o máximo a que pode aspirar é a ter o seu nome gravado em livros de cheques. Pagos, naturalmente. Como as honras em vida. O esquecimento virá logo a seguir e durará o tempo da Eternidade. Convém lembrar-lhes.