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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Volvidos oito meses sobre a data em que de forma totalmente inusitada lhe foi comunicada, bem como ao seu ilustre colega Paulo Cabral Taipa, a não renovação do seu contrato de trabalho na Assembleia Legislativa de Macau, Paulo Cardinal veio finalmente quebrar o silêncio a que a si próprio se tinha imposto para deixar assentar a poeira, arrumar as ideias e começar a preparar o seu futuro e o dos seus.
Passado o imprescindível período de nojo, no mesmo dia em que o Presidente da República desembarcará em Macau, para um curta visita de cerca de 12 horas, é publicada a entrevista dada pelo insigne jurista e constitucionalista aos Jornais HojeMacau, Macau Daily Times e à TDM – Televisão de Macau (aqui um extracto apresentado no Telejornal de 28/04/2019).
Trata-se de um verdadeiro documento que deverá ser analisado com a devida atenção pelos titulares do poder político que têm a obrigação, indelegável, de fiscalizarem o cumprimento da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, tratado internacional que vincula Portugal e a República Popular da China, bem como lido à luz da Lei Básica da RAEM, a mini-constituição outorgada por Pequim.
Se dúvidas houvesse sobre a forma vergonhosa como os dois mais antigos e experientes assessores da Assembleia Legislativa de Macau foram afastados, elas ficam agora totalmente dissipadas e na primeira pessoa.
Paulo Cardinal volta a prestar um indiscutível serviço ao Direito de Macau, à RAEM e aos seus residentes, a Portugal e a todos os seus cidadãos, juristas, magistrados, advogados e assessores que aqui laboram, de modo digno, sério e frontal, tal como à R.P.C. e aos que neste país se preocupam com a vigência do "segundo sistema" e a sua imagem internacional.
E fá-lo com a elevação, a dignidade, a transparência e o carácter a que a todos habituou, durante cerca de três décadas, dando-nos mais uma prova de toda a sua grandeza e humildade.
Um exemplo que tem de ficar aqui registado. Porque a integridade dos homens decentes não é negociável.
Apresenta-se como um olhar sobre "a China além da China, além das fronteiras físicas, mentais, pessoais, das muralhas do nosso conhecimento. Este é um laboratório escrito e visual que dá voz a quem, como nós, quer contornar obstáculos, sejam eles a língua, a cultura ou a dimensão de um espaço aparentemente inalcançável."
Na altura em que o Presidente da República percorre o novo Império do Meio, conversa com Augusto Santos Silva ao longo da Grande Muralha, se prepara para as selfies de Macau e para celebrar o Primeiro de Maio numa região especial de um país socialista que vinte anos depois de se tornar "patriota" continua sem ter uma lei sindical e de regular o exercício do direito de greve, previstos na sua mini-Constituição, e que, vergonhosamente, continuam a aguardar regulamentação, nada como dar uma vista de olhos por estes dias ao Extramuros.
Uma revolução faz-se com gente boa e estafermos.
Com alguns filhos da puta e tolos também (muitos ainda andam por aí a darem-nos cabo da vida).
Depois, a história encarregar-se-á de colocar cada um no seu devido lugar. Sem caganças.
Se for sem sangue melhor. É mais pedagógico porque se prolonga no tempo.
Refina-se, sofre-se, não se apaga.
Transmite-se. Abrila-se todos os anos.
O sociólogo Hao Zhidong, antigo professor da Universidade de Macau, entretanto jubilado, deu no passado dia 18 de Abril uma interessante entrevista ao semanário Plataforma. Por se tratar de um académico chinês, profundo conhecedor da realidade da RPC, de Macau e do funcionamento dos sistemas e das instituições dos dois lados da Porta do Cerco, as suas declarações adquirem uma dimensão que se proferidas por um ocidental não teriam o mesmo impacto.
As conclusões a que o Prof. Hao Zhidong chegou com o seu estudo sobre a liberdade académica não constituirão novidade quando aponta como um dos factores da sua erosão o fenómeno da “comercialização do ensino superior”.
Trata-se de algo que é tão visível em Macau – em que o simples facto de alguém organizar uma conferência sobre direitos ambientais levando ao título a questão de saber se também se tratam de direitos humanos é susceptível de causar incómodos, não vá isso ter consequências na continuidade dos contratos de trabalho –, como será nos EUA – veja-se a acção do Instituto Confúcio neste país e o último relatório sobre a presença da China no respectivo sistema educativo –, na Austrália, no Canadá ou mesmo em Portugal, muito embora nalgumas instituições a acomodação e a subserviência sejam mais fulgurantes e inversamente proporcionais à vergonha.
O que chama mais a atenção nas suas palavras foi a evolução verificada na Universidade de Macau, o que tende a ser desvalorizado pelos seus responsáveis e pelos dirigentes políticos. Mas ainda quando disfarçado é motivo de conversa, comentário e discussão em círculos mais ou menos restritos.
Diz Hao Zhidong que foi tempo em que era fácil convidar pessoas de Taiwan de diversas correntes políticas para participarem em eventos académicos, e que actualmente há o risco, como já aconteceu, dos convidados serem à chegada impedidos de entrar. Num sistema que, para quem anda no mundo, cada vez menos se sabe se é o primeiro, o segundo ou o único.
Se o caminho seguido em Hong Kong pode de algum modo ser compreendido pelo extremar das posições dos grupos internos pró-Pequim e pró-independência, com consequências imediatas ao nível da representação parlamentar, bem como nos episódios de violência que se seguiram e nos veredictos judiciais que foram sendo proferidos, já em Macau seria impensável que o garrote autoritário tivesse necessidade de se manifestar da forma por que o fez.
Sem antecedentes de violência dignos de registo – os últimos com dimensão situam-se há mais de cinquenta anos e numa altura em que os regimes políticos vigentes na China e de Portugal eram bem mais fechados do que são hoje –, com uma população reduzida, uma sociedade tradicionalmente pacífica, conservadora, avessa aos conflitos, onde o silêncio, o seguidismo e a hipocrisia, por vezes também a desonestidade intelectual, são normalmente premiados, e em que se contam pelos dedos de uma mão as vozes dos que ousam discordar e apelar ao sentido crítico dos seus concidadãos, nada faria prever o retrocesso verificado na democratização de Macau, nem o aumento do controlo da liberdade académica.
Quanto a esta de nada servirá a alguns responsáveis que se instalaram por cá ainda no tempo pré-1999, e cuja reverência ao poder vigente em nada difere da que antes manifestaram ao último governador português, virem dizer que por lá se respira o melhor dos mundos em termos de liberdade académica.
Na RAEM, o sentimento de incumprimento de promessas anteriores, o reforço de mecanismos de controlo policial interno, com a desculpa da participação no esforço de segurança nacional (que sempre se cumpriu e a que sempre se foi sensível deste lado) e o ambiente de crispação latente que perpassa alguns sectores da vida pública, com especial incidência na actividade passiva e omissiva da Assembleia Legislativa (veja-se o que aconteceu com o décimo chumbo do projecto de lei sindical), por outro lado, acentuam o espírito sublinhado por aquele entrevistado de uma nova revolução cultural em marcha.
Porém, o ponto em que se mais se evidencia a teatralidade propagandística de algumas decisões prende-se com a forma como se tem vindo querer atribuir a Macau um papel que, tendo sido tentado antes sem sucesso, desde a fundação do Fórum Macau, e não obstante o empenho de uns quantos, se tornou mais óbvio ser forçado: o de constituir uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa.
Quanto a este chavão repetido sem sentido por muitos papagaios e catatuas, Hao pergunta para que precisa a China de Macau para fazer a ligação aos países de língua portuguesa, se pode fazer essa ponte sozinha. E, digo eu, como sempre o fez sem as dificuldades burocráticas e o atavismo dos interlocutores locais.
Em política ou em matéria de relações e negócios internacionais, a generosidade, ainda que camuflada, tem sempre um custo. E quando não é económico, em termos de liberdade académica ou de direitos fundamentais, assumirá uma matriz ideológica sem resultados úteis ao nível das comunidades destinatárias.
Isto pode não chegar para nos fazer reflectir sobre a cada vez mais previsível, e politicamente frágil, escolha do ainda Presidente da Assembleia Legislativa para ocupar a cadeira de Chefe do Executivo. Uma generosidade da Comissão Permanente da APN que deverá ser agradecida pelos súbditos locais.
Todavia, é quanto basta para se perceber o pouco tempo que o Presidente da República passará na RAEM no contexto da próxima viagem à China.
Não desvalorizando a importância do italiano, também feriado nacional, 25 de Abril só houve um e falava português.
Passaram quarenta e cinco anos, o pragmatismo continua a não se compadecer com a lamúria, arte em que localmente também somos exímios.
O pragmatismo adapta-se a tudo. É a nova peste negra. A nova revolução cultural a que se refere o Professor Hao. Acomoda-se aos tempos e segue em frente.
Os tremoços e amendoins rançosos que ontem distribuíam pelos bem-comportados de Macau são agora os nossos pistacchi (pistácios). Só a propaganda não muda. E é aí que ela conflitua com a liberdade. E a utilidade de alguns sacrifícios perante os resultados possíveis. Conhecidos e previsíveis.
Ainda assim um bom sinal para se voltar a estudar John Dewey e outros autores da mesma escola. Agora à luz do princípio “um país, dois sistemas”. E com um olhar nas mais recentes linhas da política externa portuguesa e nas expectativas dos residentes da RAEM. Um petisco.