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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(foto do Macau Daily Times)
Os anos que tem passado na Assembleia Legislativa (AL), e o convívio com a gente que tem feito de Macau um negócio pessoal, gozando quer do distanciamento das autoridades chinesas sobre o que verdadeiramente se passa na RAEM, em matéria de promiscuidade entre negócios públicos e privados e gestão danosa do erário público, quer da necessidade que a RPC tem de ir disfarçando os desmandos da governação local para alijar as suas próprias responsabilidades no desastre e, ao mesmo tempo, polir a imagem do "segundo sistema", têm vindo a refinar a actuação do Presidente da AL.
Com um perfil cinzentão, depois de graduado pela Universidade de Zhejiang e constituindo mais um dos muitos "talentos locais" que passou pela Universidade de Jinan (o currículo reza que foi "investigador visitante" embora não se saiba de quê, durante quanto tempo, se em part-time, nem que contributos trouxe à Ciência), foi subindo na hierarquia local à custa dos negócios, ao mesmo tempo que se foi promovendo, como é timbre entre os burocratas dessa linhagem, graças à sua presença na Assembleia Popular Nacional e no seu Comité Permanente, onde permanece desde o início deste século sem que se lhe conheça feito ou obra.
Há dois anos, fazendo o balanço do ano legislativo, afirmara não ter pretensões a Chefe do Executivo, por entender não ter "postura, nem feitio" para o lugar e considerar que com a sua idade "a maioria das pessoas já se aposentou", acabando a perguntar "porque é que tenho de continuar?", havendo "tantos talentos em Macau" (Hoje Macau, 29/08/2016).
Bom, isso foi há dois anos. Entretanto, ganhou postura e feitio. Daí o refinamento.
De então para cá tivemos novas nomeações e eleições para a AL e aproximou-se o fim o mandato (desastroso em todo os seus aspectos) do actual Chefe do Executivo.
A AL, face à incapacidade do Governo e da sua Administração na gestão da coisa pública, ao acentuar dos problemas quotidianos da população, ao desperdício público e notório de recursos, e não obstante as baias que a protegem e foram impostas pelo anacrónico sistema eleitoral, foi nas últimas eleições objecto de uma pequena renovação.
Contudo, à medida que as receitas dos casinos e o PIB de Macau cresciam, pioravam as condições de vida da sua população, aumentava a especulação imobiliária, e a contestação social cresceu – em grande parte vinda de sectores chineses tradicionais, fartos de assistirem ao despautério, ao festival de incompetência e aos verdadeiros roubos dos recursos públicos, que levaram dois antigos altos responsáveis à prisão (e muitos mais levaria se não fossem tantos os "intocáveis") – a AL tornou-se numa espécie de nado-morto, que por passividade foi sendo esvaziada do exercício efectivo das suas funções, sem o menor remoque por parte do seu Presidente, que assim se predispôs, para não ter chatices, à mercê da vontade do Chefe do Executivo.
Sem uma direcção efectiva, entregue aos subservientes do poder económico e político, a AL assumiu na presente legislatura o seu papel de chancela de tudo o que vinha de cima, transformada como foi numa cada vez mais grotesca câmara corporativa.
O prestígio que a AL construiu ao longo de décadas sob a batuta de Carlos D'Assumpção, de Anabela Ritchie, de Susana Chou ou de Lau Cheok Va, e onde pontuaram nomes com o calibre e o bom senso de Ho Yin, Ma Man Kei, Chui Tak Kei, Edmund Ho, Roque Choi e Víctor Ng, para já não falar nalguns portugueses que por lá passaram, foi sendo derrubado pela falta de talento de Ho Iat Seng para o lugar.
Incapaz de compreender a sociedade de Macau, as suas instituições e o mundo que o rodeia, manteve apesar de tudo um papel sereno até ao início da sessão legislativa que agora findou. Foi então que se iniciou, com o seu alto patrocínio e de alguns indefectíveis ansiosos por mostrarem serviço (mau) a Pequim, "o ciclo do desastre", tantas e tão más foram as suas decisões e do órgão a que preside. Mal aconselhado por aqueles de quem se rodeou, foram-se multiplicando os atropelos à Lei Básica e ao Regimento na condução dos trabalhos parlamentares, a ponto de chegar a ser publicamente criticado no caso Sulu Sou até por alguém do escritório que patrocinou a AL.
Talvez por via disso, e à falta de melhor candidato que desse continuidade à actual dinastia, garantindo a acomodação no poder e aos negócios das novas gerações ligadas às famílias tradicionais, que têm concentrado riqueza de forma quase pornográfica e pouco transparente, o Presidente da AL deve ter começado a ver aí um furo e a oportunidade de adiar a sua própria reforma com a eleição do próximo Chefe do Executivo.
Daí que, quando foi a Pequim, em Março deste ano, deva ter começado a sentir-se inchado com as movimentações de quem, vendo o tapete fugir-lhe debaixo dos pés desde o tufão Hato, lhe começou a soprar aos ouvidos que ele seria o candidato ideal para a manutenção do status quo. Logo nesse momento se viu que começou a perder o habitual resguardo e se tenha lembrado de, sem contenção, criticar em directo os membros do Governo de Macau que também estavam em Pequim. O trambolhão foi imediato: os membros do Governo da RAEM não tinham lá ido por sua iniciativa pedir audiências ao Governo Popular Central; tinham ido, sim, chamados por este.
Não contente com a pública humilhação de que foi alvo, aceitou continuar a ser utilizado como peão, no que foi apenas mais um passo até se assumir, definitivamente, como proto-candidato a Chefe do Executivo. Se em Março já deixara em aberto a possibilidade de se vir a candidatar, ontem dissiparam-se as dúvidas que restavam, quando na surrealista conferência de imprensa que deu nas instalações da AL, para balanço da sessão legislativa, o seu vice-Presidente, irmão do Chefe do Executivo, afinçou reunir Ho Iat Seng todas as condições para ser Chefe do Executivo. Todas e mais algumas. Um portento.
Chegados a este ponto impõe-se sugerir ao Governo Popular Central que peça a gravação da conferência de imprensa de ontem para que possa aperceber-se em todo o seu esplendor da dimensão da tragédia grega que ali se consumou.
Num local e perante uma plateia que anualmente se repetem, desta vez, o Presidente da AL necessitou de ser acompanhado pela presença tutelar do vice-Presidente. De nada lhe valeu. O descarrilamento foi total e em directo.
Como quando ao referir-se à absurda, e maldosa, decisão de dispensa dos assessores jurídicos da AL, Paulo Cardinal e Paulo Cabral Taipa, quis fazer humor; assumindo o tom paternalista de que um "despedimento" é uma nova oportunidade para quem já passou os cinquenta anos, fez toda a sua carreira naquela casa, com apreciável sucesso e manifesta competência, e assim se vê obrigado a procurar uma nova vida noutro lado para continuar a sustentar a família. Como se fosse razoável pedir a juristas consagrados, especializados e de mérito reconhecido, dentro e fora de portas, que fossem agora iniciar uma carreira na advocacia (convém dizer ao Dr. Ho Iat Seng que os advogados não são "empresários", embora haja empresários que também "exercem" a advocacia), inscrevendo-se para fazerem exame na Associação dos Advogados de Macau e preparando-se para irem fazer defesas oficiosas, porventura como estagiários do Dr. Vong Hin Fai.
O cinismo que transparece de tais declarações é uma prova, penso eu, da desatenção de Pequim ao que se passa em Macau. Não estivesse o Governo Popular Central tão assoberbado com a guerra comercial com os EUA e com os tweets de Trump, e o Grupo de Ligação a acompanhar com pouca atenção os assuntos da RAEM, e Ho Iat Seng teria sido poupado ao seu próprio harakiri.
Tal acto foi a última evidência de que se há alguém que deva ser reformado, por manifesta desadequação ao lugar e à vida pública, é o actual presidente da AL. Ele e a clique que o protege, aproveitando-se para isso o final de mandato de Chui Sai On. O tal que um ano volvido sobre a data do tufão Hato nem uma cerimónia de homenagem às vítimas que perderam a vida pela incúria da Administração da RAEM foi capaz de promover, ausentando-se em gozo de férias (ademais imerecidas para quem pouco ou nada faz em prol da comunidade de Macau e dos interesses da RPC).
A machadada final foi dada quando Ho Iat Seng referiu que a não renovação dos contratos daqueles dois juristas não se deveu a razões políticas, nem pelo facto de serem portugueses, o que só confirmou o arbítrio e torna ainda mais incompreensível a razão para a emissão de "cartas de recomendação". Aquele ar de gozo fala por si.
Pequim devia mandar descansar o Dr. Ho Iat Seng. Por patriotismo, para protecção da sua imagem e das instituições da RAEM.
Ao contrário dos dispensados, com a obra que ele deixa ninguém dará pela sua falta. Na AL ou no Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional. A sua irrelevância política é total.
Mas antes de o dispensarem dêem-lhe um espelho para que se possa aperceber dos sulcos que em apenas um ano o cinismo gravou no seu rosto. É triste que todos os vejamos, menos ele. Tenho pena dele. E é terrível saber que não haverá cirurgia plástica que o safe. Aqui ou em Pequim.
(editado para correcção de gralhas)