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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Quando eu nasci o nosso Benfica tinha acabado de conquistar a segunda Taça dos Campeões Europeus. Não sei desde quando é que me reconheci como sendo mais um dos que fazia parte da tua tribo, mas lembro-me bem dos domingos passados dentro do carro do pai Eurico, primeiro num Peugeot, esporadicamente num Mercedes, mas a maior parte das vezes dentro do velhinho Fiat 1500 que tantas vezes nos transportou até ao velho campo do Sport Lisboa e Beira, onde o Shéu despontou. Não raro, quando havia festa lá em casa, aproveitava sorrateiramente para sair e ia para dentro do Fiat ouvir o relato. Nessa altura, era através dos relatos da Emissora Nacional, do Rádio Clube e da Radio Pax que eu me encontrava contigo. Não raro quando me descobriam, já a noite tinha caído nas margens do Chiveve, encontravam-me em pranto, agarrado a uma bola vermelha e branca. E quando me perguntavam o que se tinha passado eu explicava que só tínhamos ganho por 3-0, que tu só tinhas marcado dois golos, que isso era imperdoável. Abalado, lá me obrigavam a sair do carro, porque já eram horas de jantar e o menino não podia estar ali no quintal àquelas horas, sozinho, agarrado a uma bola, chorando dentro de um carro. No velho ciclo, de cada vez que marcava um golo, ou quando fugia de casa, na Ponta Gea, do outro lado do Grande Hotel, e ia jogar futebol na praia com a criadagem da zona, o que irritava solenemente a Melita, nunca era eu quem marcava. Quando isso acontecia, instintivamente, eu gritava "Golo do Eusébio!". Tal e qual como fazia o saudoso Artur Agostinho. Naquele momento tu incarnavas em mim e quem marcava eras sempre tu, não eu. Depois, quando o "pequenino" me arrastava para casa, ao final da tarde, para me obrigar a tomar banho antes de jantar, lá seguia satisfeito perguntando-lhe se tinha visto o meu golo, ao que ele respondia que o menino tinha marcado "um golo à Eusébio". Nada me deixava mais satisfeito.
Mais tarde, já a viver em Lisboa, à medida que crescia, ia ouvindo as histórias do nosso Benfica, contadas pelo meu padrinho Fernando Luís. Era eu quem nessa altura, depois dele ter cegado, lhe lia religiosamente "A Bola". Um dia foi a avó Gertrudes que me levou a ver a sala de troféus e me comprou o primeiro emblema. Exultei com a oferta. Foi nessa altura que fiquei a saber tudo sobre a construção do velho Estádio da Luz, do azulejo com o nome numa das torres de iluminação, do falecimento do marido dela em pleno Estádio, a acender um charuto, das epopeias de Berna e de Amesterdão. Da final de 68 ainda me lembro bem. E também de todos aqueles jogos que jamais esquecerei, alguns que tanto me fizeram sofrer como contra o Celtic e contra o Ajax. Eras sempre tu, não Deus, aquele em quem eu acreditava nos momentos de verdadeira aflição. Houve uma altura em que me cruzava contigo muitas vezes na Óscar Monteiro Torres. Tinhas o pequeno Saab amarelo e frequentavas o desaparecido Quartier Latin. Então, eu nadava no Benfica, no Areeiro, e na piscina do Ateneu. Inclusivamente, houve uma ocasião em que tiveste um ligeiro acidente no cruzamento com a Augusto Gil, quando tentavas encontrar um lugar para estacionar. E até nesse dia eu lá estava, apreciando a forma como sem elevares o tom de voz chamavas a atenção para o condutor do veículo que te abalroara sem respeitar a prioridade e ignorava que tinhas jogo no sábado, em Aveiro. Perguntavas repetidas vezes ao infractor o que seria se tivesses jogo naquele dia e tivesses ficado lesionado. E ele, sem saber muito bem o que dizer, perante a tua figura de estrela, pedia desculpas atrás de desculpas.
Depois de teres deixado de jogar continuei a ver-te no velho Estádio da Luz, de toalha à volta da mão. E depois no "Tia Matilde", como no dia em que acabei o mestrado e fui lá almoçar, e na nova Catedral onde a Eusébio Cup tinha sempre um sabor especial. E naquela jornada gloriosa de romagem ao Bessa, quando lá fomos empatar para nos sagrarmos campeões. A festa que foi. O autocarro alugado à saída de Cascais com os companheiros de sempre. A família Azevedo Gomes, o Pedro Teodoro, o Catarino, o Zeca e a família, os Borges Coutinho, o almoço na Mealhada antes do jogo, os incentivos que vinham do banco, os cânticos na bancada, o regresso a Lisboa, a festa que foi.
O ano passado, depois de tudo o que aconteceu no campeonato, foram as tuas palavras que me levaram à última hora a embarcar com os outros "fundadores" para Amesterdão, para ir ver a final da Liga Europa. Mal sabia eu que seria a última final europeia a que irias assistir. Quando fomos para lá, depois de eu ter saído na véspera de Faro, ainda pensei que te iria encontrar no aeroporto ou no avião. A ti não te vi, embora tivesse estado com o Toni e tivéssemos tirado uma fotografia juntos. Depois, no regresso, calculo que todos tenhamos sentido o mesmo. Em matéria de lágrimas sempre fomos muito parecidos. Uns chorões, como diria Jorge Sampaio.
Quando hoje ao início da tarde, aqui em Macau, o meu cunhado me deu a triste notícia, confesso que fiquei sem palavras. Não tanto porque tivesses partido numa altura em que ainda tanto nos podias dar. Nem sequer porque aqueles tipos foram incapazes de te dar um título em 2013. Mas porque sei que não poderei voltar a estar contigo, que não me será permitido despedir-me de ti como tu merecias que eu fizesse e eu esperava poder fazer, em especial depois do falecimento da senhora D. Amália. Para te retribuir tudo aquilo que me deste dentro e fora do campo. Pelo exemplo de profissionalismo e humildade mesmo numa altura em que as dores eram recorrentes, pela forma como foste capaz de ultrapassar os momentos mais difíceis com o estoicismo que só os verdadeiros deuses conseguem, ensinando às novas gerações que o futebol sendo um jogo de paixões é também um jogo de gente educada e disciplinada e que no fim podemos todos conviver civilizadamente sem que a clubite nos tolha a razão. Se houve alguém que me tivesse ensinado que o futebol é uma escola de valores foste tu. E por tudo isso só te posso estar agradecido.
Mas saber que te vais embora sem que me dês a oportunidade de te dizer adeus, num momento em que tanta falta nos fazem, a todos, aos portugueses, não apenas aos benfiquistas, referências como tu, é algo que me deixa profundamente triste. Apesar de tudo, conforta-me saber que quando te sentares no trono forrado a ouro que São Pedro te reservou, poderemos contar contigo para finalmente nos iluminares, infiéis incluidos, com toda a tua graça, arte e sabedoria. Pelo menos a partir de hoje teremos a certeza que tu estarás em toda a parte, no meio de nós, dentro e fora do campo, zelando para que se escreva direito por linhas tortas. Se por outras razões não fosse, isso já seria o suficiente para te perdoar todas aquelas lágrimas que verti quando sozinho e em silêncio te escutava dentro do Fiat.